RECOMENDAÇÕES PARA A ASSISTÊNCIA AO PARTO E NASCIMENTO EM TEMPOS DE PANDEMIA DE COVID-19: EM DEFESA DOS DIREITOS DAS MULHERES E DOS BEBÊS
A situação atual de emergência de saúde pública evidencia as fragilidades e contradições dos sistemas de atenção à saúde de mulheres e bebês. Nesse contexto, nós, pessoas e instituições abaixo assinadas, vimos manifestar nossa preocupação em relação às medidas que colocam em risco a saúde, o bem-estar e os direitos de mulheres e bebês. Ao mesmo tempo, afirmamos a necessidade de agirmos coletivamente no sentido de produzir ações que favoreçam a assistência ao parto e nascimento segura, empática, respeitosa e baseada em evidências.
Nesta crise, os direitos das mulheres, arduamente conquistados ao longo de anos de avanços e que se manifestaram em políticas públicas, estão duramente ameaçados. O desrespeito ao direito a acompanhante no parto, ao acompanhamento com uma doula e de não ser induzida a uma cesárea desnecessária são os exemplos mais marcantes desse retrocesso (D24AM, 2020; RIBEIRO; KNOPLOCH, 2020). Porém, mesmo no contexto da pandemia de Covid-19, os valores éticos e políticos a orientar a atenção ao parto e ao nascimento no Brasil devem permanecer calcados no entendimento da saúde como um direito (artigo 6º da Constituição Federal de 1988) e no marco geral dos direitos humanos. Para que isso se consolide, os achados diários da pesquisa científica devem ser considerados e adaptados para a regulação e organização da rede de atenção em saúde materna e infantil, de forma a garantir acesso, qualidade, segurança e continuidade do cuidado para mulheres e recém-nascidos acometidos ou não pela Covid-19, protegendo-os da contaminação pelo coronavírus.
Desde a década de 1980, o Ministério da Saúde tem proposto políticas e programas visando à qualificação da assistência à saúde, em especial de bebês e crianças e das dimensões reprodutivas das mulheres. O Ministério da Saúde já publicou orientações para a prática da gestão e da assistência materna e infantil (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020), contudo, reconhecemos as dificuldades existentes no Brasil para organizar um modelo de atenção centrado na necessidade da mulher e do bebê; as barreiras para implementar protocolos baseados em evidências científicas e para promover educação continuada dos profissionais atualizada e baseada em evidências. Assim, apresentamos as recomendações a seguir para proteger e promover os direitos humanos de mulheres, bebês.
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O direito a acompanhante deve ser assegurado para todas as mulheres em todo o período de internação, independentemente de estarem ou não com sintomas ou com resultado positivo para Covid-19. Essa reivindicação tem amparo na Lei 11.108/2005 (BRASIL, 2005) e nas recomendações do Ministério da Saúde (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2017) e da Organização Mundial da Saúde (WHO, 2018, 2016). Há consenso social e evidências consolidadas sobre os benefícios do acompanhante no parto para a saúde física e emocional da mulher e do bebê (BOHREN et al., 2017; SYCKLE; CARON, 2020), assim, os Princípios de Siracusa (UN, 1985) devem ser aplicados ao caso. Obrigar as mulheres a darem à luz sem qualquer tipo de suporte afetivo pode configurar uma situação de tratamento degradante e humilhante.
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A recomendação do Ministério da Saúde, do Conselho Federal de Medicina e da Associação Médica Brasileira de suspensão imediata das cirurgias eletivas (nas quais se incluem cesáreas) sem indicação clínica (AMB, 2020; CFM, 2020) deve ser implementada. Essas cesarianas apresentam os riscos inerentes de uma cirurgia de grande porte, mas não têm indicação clínica para a saúde da mulher e da criança e utilizam recursos de equipamento de proteção individual (EPI), escassos neste momento no Brasil, assim como materiais cirúrgicos, e aumentam o tempo de internação e a necessidade de internação em UTI neonatal. Ademais, sabe-se que é necessário diminuir a exposição da parturiente a potenciais fontes de infecção e profissionais de saúde assintomáticos podem constituir uma dessas fontes. Em um centro cirúrgico, cerca de dez deles circulam, aumentando as chances de contágio para a parturiente e acompanhante. O maior tempo de internação decorrente da cesariana também incrementa o risco de contágio para mulheres e crianças. Cabe ressaltar que a Saúde Suplementar ostenta proporções de nascimentos pela via cirúrgica superiores a 80%.
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A acomodação em pré-parto coletivo também deve ser evitada. No contexto da pandemia, torna-se ainda mais importante garantir ambiente privativo para o trabalho de parto e os quartos PPP (pré-parto, parto e puerpério), conforme regulamentado pela RDC-36/2008 da Anvisa (ANVISA, 2008).
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Gestações são na maioria das vezes processos fisiológicos e saudáveis e muitas gestantes estão em quarentena. Hospitais gerais têm sido demandados por pessoas doentes, muitas delas portadoras de coronavírus, e não são ambientes adequados para pessoas hígidas em trabalho de parto e seus acompanhantes. Assim, a assistência ao parto deve ser reorganizada priorizando-se maternidades de baixo risco e Centros de Parto Normal. Outra alternativa que deve ser considerada é o parto domiciliar seguro, planejado e com retaguarda hospitalar conforme recomendam as evidências científicas (AOM, 2020; NPEU, 2017) e as Diretrizes Nacionais de Atenção ao Parto (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2017).
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No caso de a única possibilidade de atendimento em um determinado território ser um hospital geral, setores específicos devem ser definidos para a assistência ao parto, ou seja, a maternidade do hospital, com porta de entrada específica, para proteger as mulheres de possível contágio, incluindo o uso de EPI mínimo pelas parturientes durante a internação (máscaras, por exemplo). Iniciativas internacionais recomendam a assistência ao parto de risco habitual em instalações de baixa complexidade que podem ser, inclusive, estruturas temporárias, a exemplo dos hospitais de campanha. No plano internacional, hotéis têm sido requisitados para que temporariamente funcionem como centros de parto normal (SUMMERS, 2020).
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Nos partos de risco habitual, deve-se assegurar o cuidado ao trabalho de parto e parto assistido pelas enfermeiras obstetras e obstetrizes, profissionais especializadas em atenção ao parto sem complicações, com resultados perinatais e maternos positivos; e que a retaguarda médica fique reservada para assistência às complicações obstétricas e às gestantes de risco. Há evidências de que este modelo tem melhores resultados e por isso é recomendado pelos organismos internacionais (RENFREW et al., 2014).
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A alta de mulheres e bebês deve ocorrer em tempo oportuno, de modo a evitar a permanência desnecessária de puérperas e bebês saudáveis em hospitais ou maternidades, para reduzir as oportunidades de exposição ao coronavírus. A continuidade do cuidado após a alta hospitalar deve ser assegurada pela atenção primária de saúde e profissionais/serviços responsáveis.
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O acesso a métodos de planejamento reprodutivo para todas as mulheres deve ser assegurado, evitando-se burocracias e atrasos.
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As gestantes devem ser orientadas a evitar UPAS e prontos-socorros gerais, onde espera-se maior exposição ao Covid-19.
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As evidências científicas mostram resultados mais favoráveis quando a mulher é acompanhada por doulas. As doulas podem ofertar suporte à mulher na gravidez e no parto, e apoiar a elaboração do plano de parto, orientar a vinculação da gestante ao serviço de atenção ao parto, assim como apoiar as mulheres em trabalho de parto. Deve-se, assim, respeitar as escolhas da mulher quanto à participação da doula.
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Atenção especial deve ser dada para a promover a equidade e assegurar a proteção dos direitos de mulheres vulnerabilizadas, como um dos princípios do sistema de saúde brasileiro.
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As medidas aqui propostas visam também proteger os profissionais de saúde da contaminação pelo coronavírus. Esses trabalhadores compõem uma força de trabalho imprescindível para o controle da epidemia e assistência às pessoas doentes. Conforme demonstra a experiência internacional e nacional, os profissionais de saúde estão sendo afastados por contágio e adoecimento com Covid-19. Assim, é urgente o estabelecimento de mecanismos de apoio a profissionais de saúde, para que possam cuidar de sua saúde física e emocional de maneira adequada.
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As recomendações e normas técnicas, editadas conforme o surgimento de evidências científicas e a evolução da pandemia, devem vir acompanhadas de mecanismos que assegurem a ampla discussão e possível implementação nos serviços de saúde
Por fim, reforçamos que o caráter parcial ou transitório do conhecimento científico no contexto da pandemia de Covid-19 não justifica a supressão dos direitos fundamentais de mulheres e bebês. Cientes de que as recomendações elencadas podem vir a ser reconsideradas devido a novos conhecimentos ou conforme a evolução da pandemia, subscrevemo-nos (veja a seguir).
Maiores informações pelo email:
partoecovid19@gmail.com