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UFPA- Campus Marabá: 01 a 03 de outubro de 2012.
REFLEXÕES PARA UM ENSINO DIALÓGICO DE GÊNEROS
Arthur RIBEIRO
Universidade do Estado do Pará
ar-thur@hotmail.com
Resumo: Este trabalho é resultado parcial de estudos e análises no âmbito da teoria da
linguagem de Voloshinov e Bakhtin, e procura trazer algumas reflexões sobre a atual situação
do estudo e da transposição para o ensino de línguas da noção de gênero discursivo, pondo em
questão a pretensa filiação teórica desse processo às formulações dos autores citados. A
discussão sobre gêneros discursivos, embora se pretenda filiada a esses autores e cite
passagens conhecidas de seus textos, aparece de forma mais monofônica do que polifônica,
desligada de conceitos fundamentais para a compreensão do pensamento do Círculo, tais
como o de signo ideológico, enunciado, plurilinguismo e dialogismo, configurando uma
abordagem demasiadamente simplificada das condições de produção e interação constitutivas
do gênero. Visando a contribuir para a ressignificação da abordagem de gêneros em sala de
aula, este trabalho faz uma breve apresentação dos conceitos bakhtinianos supracitados e
discute a possível aplicação destes em uma nova proposta de ensino de gêneros discursivos,
por meio da análise de um pequeno texto: um relatório criminal escrito em forma de poesia
por um delegado de Riacho Fundo-DF.
Palavras-chave: Gêneros do discurso; interação; teoria sócio-histórica.
1. A idealização
Antes de tudo, essas reflexões são um manifesto. Um barco ensaiando uma
contracorrente ao que se faz há tempos dentro das escolas e especificamente nas aulas de
língua, regra com valorosas exceções que pode ser reduzida em uma palavra: enganação.
Enganamos o estudante a partir do momento em que negamos a entrada na escola à
concretude do cotidiano, à vida que acontece do lado de fora, onde a língua se atualiza a cada
enunciação. Preferimos ainda a rigidez normativista, que quer moldar a criatividade em uma
forma abstrata e falsa. Estabelecer uma construtiva força contrária é compromisso ético de
todos. Esse artigo, para além da mera figuração em currículo lattes, quis ser escrito e quer ser
lido, e quero dá-lo a ler com essa entonação de manifesto contagiando cada palavra, algo que
vá ao encontro de alguma preocupação do leitor, mesmo alguma que ele não sabia antes que
tinha.
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Em segundo lugar, ressalto o que o título já traz: trata-se de reflexão, e, como tal, falta- lhe o retorno da experimentação prática. Fruto de algum tempo de pesquisa de um estudante
de graduação, em sua difícil tarefa de elaboração de hipóteses sobre a prática de ensino de
língua, em uma universidade na qual o estudante e sua formação se acostumaram a ser o
último na lista de prioridades. Mas espero que não perca por isso seu valor. Afinal, o que
distingue a produção boa ou ruim é bem mais a honestidade do que o acúmulo de títulos de
seu autor.
O que se quer aqui é refletir sobre a categoria dos gêneros do discurso, dialogando
com alguns autores e autoras a fim de analisar como esse conceito vem se estabelecendo na
prática de ensino, se ele de fato tem representado a ressignificação das aulas de língua, como
se propagandeia. Concluindo que temos ainda muito a ganhar com o conceito, damos a ler um
interessante texto para pensar o quanto. Esperamos que essas breves palavras possam ser úteis
a quem as apreciar. Saudações aos estudantes de Letras de todo o Brasil.
2. O planejamento
Alguns pontos nos conduzem em nossa análise. O primeiro: quando Rojo (2005)
coletou e examinou diversas produções acadêmicas sobre gêneros, percebeu ela que havia
uma diferença considerável entre os trabalhos que usavam a terminologia “gênero do
discurso/discursivo” e “gênero de texto/textual”. Os primeiros buscavam uma análise
derivada da análise do discurso, mobilizando categorias de ideologia, sujeito, contexto, entre
outras, quase sempre usando como principal referência Bakhtin (2003) e Voloshinov (2004).
Os segundos se restringiam mais a uma análise da estrutura textual, por meio de categorias
derivadas da linguística textual. De modo que uma possível convergência entre os dois
conceitos e suas significações e usos e, principalmente, entre os procedimentos utilizados em
cada análise, parecem pelo menos requerer cautela, sob o risco de nos iludirmos pensando que
estamos relacionando língua e história, sociedade, cultura, etc., quando na verdade não vamos
muito além de categorias formais do texto.
O segundo, também destacado por Rojo (2005): a história da recepção da obra de
Voloshinov e Bakhtin1
nos legou uma série de trabalhos que, provavelmente no afã de
relacionar a análise a teóricos amplamente aceitos, afirmam partir de uma perspectiva sócio- histórica, mas praticamente citam somente passagens consagradas de um dos textos mais
populares de Bakhtin, “Os gêneros do discurso”. A citação não tem garantido, segundo Rojo
1 As recentes desmistificações do bakhtinismo, na exegese de Bronckart e Bota (2012), nos desobrigam ao uso
de termos como o famoso “círculo de Bakhtin”, bem como à atribuição da onipaternidade bakhtiniana,
valorizando principalmente a obra de Voloshinov.
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(2005), uma análise de fato sócio-histórica, que mobilizaria outras elaborações da obra,
ultrapassando a definição de gênero como “forma” ou “tipo”, presente no texto citado.
Com esses dois subsídios, podemos pensar a prática de ensino de gêneros. Terá ela
espelhado essa realidade da análise mostrada acima, fingindo ser pautada no aspecto social,
histórico, ideológico, embora passe longe disso? Reflitamos sobre essa questão, observando
um verbete da curiosa obra de Costa (2009, p. 52), dirigida principalmente ao ensino de
línguas baseado no gênero.
CALENDÁRIO (v. FOLHINHA): ao pensar na organização dos anos civil
ou religioso, povos e instituições antigos ou modernos procuraram oficializar
um sistema de medida cronológico baseado no conhecimento de fenômenos
astronômicos, crenças e numa série de convenções específicas. Assim, o
tempo passou a ser dividido em anos, meses e dias. Calendário é, pois, um
sistema que apresenta o ano como resultado da formação de determinado
número de dias, semanas e meses, conforme as regras estabelecidas por cada
povo ou nação ou instituição. Uma folha, tabela, almanaque ou impresso em
que se indicam os dias, as semanas e os meses do ano, geralmente
destacando os feriados, as festas nacionais e as fases da Lua também recebe
o nome de calendário (...). Por extensão de sentido, calendário pode ser ainda
um conjunto de datas (cronograma) que são fixadas antecipadamente para a
realização de determinados eventos.
O que o verbete acima nos mostra, ao tentar descrever o gênero calendário? O texto
começa com uma tentativa de contextualizar historicamente o gênero, embora diga muito
pouco sobre isso, e o que diga seja muito incompleto e de bem pouca relevância para qualquer
análise, para logo depois passar a uma descrição da estrutura formal do gênero, à qual se
dedica pelo resto do verbete. O que poderia ser dito em um estudo sócio-histórico do gênero
calendário, Arthur? Muita coisa. Em muitas cidades, estabelecimentos comerciais mantém
uma prática de presentear os clientes com calendários, por exemplo. O calendário está
também presente em estabelecimentos de administração e empreendedorismo público e
privado, cumprindo um certo papel no cotidiano dessas Configura-se assim, a nossos olhos,
que é um engano pensar que um ensino pautado em análises de verbete como a citada estejam
proporcionando o reconhecimento do gênero enquanto instrumento histórico-cultural de
interação pela linguagem, falhando, por isso, a tentativa de, por meio desse conceito,
estabelecer mudanças significativas em antigas práticas de ensino de língua. Rojo (2008, pp.
99-100) mata a pau:
O momento atual de rearticulação do conceito [de gêneros do
discurso/texto] no campo didático, pelas contribuições da didática de línguas
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e da linguística aplicada, oscila entre esses polos: um resgate de uma
esquecida perspectiva política aristotélica na educação para a coisa pública
ou um novo conceito rearticulado a serviço de práticas escolares já
conhecidas.
No primeiro caso, estaremos (...) lidando com uma reconstituição do objeto
enquanto ruptura, que tece novas possibilidades de caminhos por onde a
vida possa fluir. Quais possibilidades de caminhos? Se enfatizamos a
formação geral do jovem como protagonista da coisa pública, como leitor e
produtor crítico, replicante, de discursos globalizantes, como multicultural
em sua cultura e poliglota em sua língua, temos de enfocar, de maneira
transdisciplinar, os discursos em sociedade como práticas letradas em sua
relação com as identidades dos jovens e com as culturas juvenis, numa
abordagem curricular (...) culturalmente sensível. Não cuidaremos mais, na
composição do currículo, da seleção de objetos ou conteúdos a serem
estudados (...) mas de que práticas sociais letradas e cidadãs podem ser
favorecidas – como quer Aristóteles na Retórica – por meio do uso e da
compreensão de discursos situados.
Feitos esses diálogos, chegamos ao ponto de impacto. Como podemos abarcar os
componentes de uma abordagem sócio-histórica de modo a proporcionar um ensino pautado
nos gêneros do discurso como categoria mobilizadora de práticas sociais “letradas e cidadãs”
mediadas pela linguagem? Pensamos que um caminho importante para essa meta é a análise
do gênero que demonstre a sua vitalidade enquanto instrumento de ação pela linguagem,
sempre atenta à relação entre o gênero e suas condições de produção. Uma análise desse tipo
pode ser feita de forma reveladora em textos que signifiquem por meio da intergenericidade,
ou seja, elaboração de um texto de um gênero sob a forma de um outro gênero, conceito
emprestado de Marcuschi (2008). Entenderemos do que se trata a seguir.
3. A revolução
Não percamos tempo: vamos direto ao texto que queremos dar a ler. Trata-se de um
relatório policial escrito por um delegado de Riacho Fundo, no Distrito Federal,
surpreendentemente composto em forma de poesia.
Já era quase madrugada
Neste querido Riacho Fundo
Cidade muito amada
Que arranca elogios de todo mundo
O plantão estava tranqüilo
Até que de longe se escuta um zunido
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E todos passam a esperar
A chegada da Polícia Militar
Logo surge a viatura
Desce um policial fardado
Que sem nenhuma frescura
Traz preso um sujeito folgado
Procura pela Autoridade
Narra a ele a sua verdade
Que o prendeu sem piedade
Pois sem nenhuma autorização
Pelas ruas ermas todo tranquilão
Estava em uma motocicleta com restrição
A Autoridade desconfiada
Já iniciou o seu sermão
Mostrou ao preso a papelada
Que a sua ficha era do cão
Ia checar sua situação
O preso pediu desculpa
Disse que não tinha culpa
Pois só estava na garupa
Foi checada a situação
Ele é mesmo sem noção
Estava preso na domiciliar
Não conseguiu mais se explicar
A motocicleta era roubada
A sua boa fé era furada
Foi lavrado o flagrante
Pelo crime de receptação
Pois só com a polícia atuante
Protegeremos a população
As diligências foram concluídas
O inquérito me vem pra relatar
Mas como nesta satélite acabamos de chegar
E não trouxemos os modelos pra usar
Resta-nos apenas inovar
Resolvi fazê-lo em poesia
Pois carrego no peito a magia
De quem ama a fantasia
De lutar pela Paz ou contra qualquer covardia
Assim seguimos em mais um plantão
Esperando a próxima situação
De terno, distintivo, pistola e caneta na mão
No cumprimento da fé de nossa missão
Riacho Fundo, 26 de Julho de 2011
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Del REINALDO LOBO
63.904-4
Sem perder o embalo, vamos à notícia que foi publicada no portal G1, à época do
ocorrido, da qual extraímos o texto.
O delegado Reinaldo Lobo, da 29a DP, no Riacho Fundo, a 18 quilômetros
de Brasília, surpreendeu a Corregedoria da Polícia Civil ao registrar, no dia
26 de julho, um crime em forma de poesia.
O documento apresentado pelo delegado faz parte do inquérito policial,
formado ainda pelo auto de prisão em flagrante, as oitivas e o relatório. A
peça final, única feita em poesia, não foi aprovada e teve que ser refeita. (...)
A vontade de fazer um trabalho diferente motivou a redação do poema, disse
o delegado. “O nosso trabalho é um pouco de idealismo. Apesar de muito
árduo, ele é um pouco de fantasia, de você lutar pela reconstrução e pela
melhora do mundo. Acho que isso traz muita realização e eu quis
transformar isso em arte, daí a ideia da poesia.”
Lobo disse ao G1 que sua intenção era chamar a atenção de quem fosse ler o
inquérito.
“Nos deparamos com situações difíceis. Naquela noite, tive vontade de
transmitir uma mensagem a quem fosse ler aquele inquérito.”
Apesar da criatividade, o relatório retornou da Corregedoria com o pedido de
que fosse escrito nos padrões da polícia. Lobo achou melhor solicitar o
ajuste a outro delegado. “Não existe nada que regre a redação oficial de um
relatório. O Código de Processo Penal só exige que se narre o caso e se
citem as informações importantes. O delegado deve ter liberdade de fazer
isso”, defende.
Esta foi a primeira vez que Reinaldo Lobo escreveu um relatório em poesia.
Apesar de o formato não ter sido aceito pela Corregedoria, não houve
nenhum tipo de punição ao delegado, que não abandonou completamente a
ideia.
“Vou tentar um diálogo com a Corregedoria para tentar ver o que é possível
fazer em harmonia”, afirmou o delegado, fazendo rima.
O texto composto pelo delegado pulsa vivo na transcrição que fazemos, e a notícia
joga uma importante luz sobre nossa análise dele. O que temos? O delegado, sem os modelos
de relatório nos quais basear o seu, decide inovar, fazendo-o em forma de poema, com versos
e rimas. Justifica indicando a associação que faz do poema como um potencial carregador de
sentimentos e de ideais, em contraposição à rigidez e secura do relatório policial, afirmando
que teve vontade de transmitir seu sentimento de que o trabalho policial é uma luta pela
justiça e pela paz compondo um poema como seu relatório (e apresentando o relatório como
um poema). Não obstante, a inovação não consegue passar com sucesso pelos trâmites, e
acaba sendo rejeitada pela instância superior da polícia, a corregedoria. Como se vê, o retorno
vem com o pedido de que a escrita seja feita “nos padrões da polícia”, ou seja, na
padronização e dogmatismo do gênero relatório tradicional.
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Qual a possível consequência dessa análise para o ensino de língua pautado no
gênero? A mais evidente é a ressignificação do papel do gênero na sala de aula. De tipo ou
forma a ser obedecida e seguida em uma sequência didática de produção textual, é possível
passar para o reconhecimento do gênero enquanto forma dinâmica de significação social,
atualizável e ressignificável em enunciados como o relatório em forma de poesia. Como
afirma Bakhtin (2003), apreendemos não só as formas da língua, mas também as formas dos
gêneros, na aquisição da linguagem. Assim, pode-se pensar o gênero como forma que o
sujeito conscientemente mobiliza para sua significação e ação pela linguagem, reconhecendo
no gênero as formas ideológicas, as ideias e sentimentos, que são, no caso do relatório, a
padronização e o idealismo, a rigidez e a liberdade. Pautar o ensino na condução criativa do
aluno pelos caminhos do gênero, entendido dessa forma, nos parece uma forma bastante
profícua de conscientização crítica sobre a linguagem e o mundo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora
Fornoni Bernadini et al. São Paulo: Unesp: Hucitec, 1998.
__________. Estética da criação verbal. 4. ed. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
BRONCKART, J.-P. e BOTA, C. Bakhtin desmascarado. Tradução de Marcos Marcionilo.
São Paulo: Parábola, 2012.
COSTA, S. R. Dicionário de gêneros textuais. 2. ed. rev. ampl. Belo Horizonte: Autêntica,
2009.
MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo:
Parábola, 2008.
ROJO, R. Gêneros de discurso/texto como objeto de ensino de línguas: um retorno ao
trivium? In: SIGNORINI, I. (org.) [Re]Discutir texto, gênero e discurso. São Paulo: Parábola,
2008.
_________. Gêneros do discurso e gêneros textuais: questões teóricas e aplicadas. In:
MEURER, J. L., BONINI, A. e MORRA-ROTH, D. Gêneros: teorias, métodos e debates. São
Paulo: Parábola, 2005.
VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. 11. ed. Tradução de Michel
Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2004.