Além das siglas, ainda têm as ideias que as acompanham. Assim, cabem mais questões. Competências e habilidades, novos modismo pedagógico? Interdisciplinaridade ou transversalidade mais uma embromação dos teóricos da educação? Leis, diretrizes nacionais, projetos pedagógicos e regimentos, sintomas do nosso burocratismo estatal, juridicismo desvairado e a ilegalidade consentida? O que isso tem a ver com a proposta pedagógica da escola e o currículo nacional?
Como diz o adágio popular “palavra a mais só custa dinheiro em telegrama”, resolvi acrescentar algumas nesse caleidoscópio discursivo. Muitas questões podem parecer inicialmente desconexas e sem o mínimo de sentido, nessa atmosfera dominada pelos teóricos obcecados pela fantasia de poder. Mas, sair da caverna, ajuda a observar a realidade para além da aparente discussão fútil e melodramática, tão comum nos círculos profissionais.
O cenário educacional, oriundo da redemocratização brasileira apresenta um ativismo político tão intenso, que a consequência mais comum, é a confusão. Só as siglas, supracitadas neste breve ensaio, já bastariam para desmotivar um leitor pouco habitual. Contudo, ser um profissional da educação, e ignorar seu campo de identidade existencial, é imitar como na mitologia, o avestruz, famoso por esconder sua cabeça no chão ao primeiro sinal de perigo. Melhor então, usá-la para entender a realidade, sem a pretensão da utopia insana.
Tantos questionamentos parecem uma atitude pedante pela ousadia de achar ter todas as respostas. Porém, mais valem algumas perguntas honestas, que fartas falsas respostas. Nos últimos meses alguns fatos me despertaram para um estado de coisas, isto é, um universo circunscrito, talvez da percepção do espírito reinante no sistema público de ensino brasileiro. Os encontros, reuniões, semanas pedagógicas, congressos, assembleias, evidenciam uma aridez intelectual, que confirma o domínio da superficialidade teórica.
Muitos recorrem às velhas máximas do nacionalismo-socialista e atribuem tudo que julgam pertencer ao mal, como uma culpa dos governos, outros preferem a acusação leviana, e responsabilizam o capitalismo por todas as mazelas do mundo. Nessa mesma perspectiva, também combinam a responsabilidade do governo e do capitalismo, mas numa escala internacional, e acusam as leis, diretrizes e programas educativos de imposições imperialistas do capital, por meio de organismos internacionais, a exemplos da OCDE, BID e ONU.
As ideias prontas e viciadas não tem limites, em especial se o sujeito julgar-se um revolucionário, as acusações levianas e estapafúrdias alcançam a exosfera. Atitudes que impossibilitam a mais simples observação da realidade. Pois, entender que todas as supracitadas siglas não são apenas letras, em formato de caixa alta, mas refletem uma ação coordenada e muito bem preparada, num objetivo de garantir um resultado desejado, supõem resignar-se e adotar uma atitude de resistência a tantas aberrações.
As notícias da educação escolar multiplicam-se nos meios de comunicação. As fartas propagandas estatais anunciam novos modelos de escolas e programas educativos. Os jornalistas discutem o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) e os conceitos das universidades. Os professores movimentam-se reivindicando melhores salários (PSMN), plano de carreira (PCCR) e percentual do PIB para aumentar os investimentos na educação. As siglas parecem intermináveis. A julgar por esses fatos já teria razões suficientes para estudar o dinâmico contexto da educação.
Discutir esse panorama é muito interessante e esclarecedor, quando se ousa adotar o princípio da análise honesta, sem a ideologia de classes sociais, vitimização dos fracos, e o idealismo ingênuo dos românticos, ou seja, fazer a descrição da realidade sem recorrer à inversão da percepção do tempo, moral e do sujeito – objeto. Pois, entender a realidade a partir do relativismo cultural, tão na moda atualmente, é adotar o erro antecipadamente, como critério de verdade.
Estabelecida às condições dessa análise, pode-se delinear a tese que endossamos. Para identificar a coerência da ação empreendida, bastar repertir como qualquer outro, a leitura das fontes primárias mais básicas, disponíveis nos sites dos órgãos estatais de educação e nos exemplares distribuidos as escolas públicas. Essa metodologia desvela a pretensão do Ministério da Educação de firmar um currículo nacional mínimo, no sistema de ensino do país. Saber o propósito dessa institucionalização é que buscamos esclarecer.
Qual a finalidade dos esforços notoriamente empreendidos pela União através do Ministério da Educação, em articulação com Conselhos Nacional, Estaduais e Municipais, Secretarias de Educação Estaduais e Municipais, Universidades Estaduais e Federais (públicas e privadas) e entidades representativas para consolidar uma base nacional comum de conhecimentos e habilidades?
Para esclarecer essa questão torna-se indispensável recorrer ao artigo 9, inciso VI, da LDB, que obriga a “União assegurar processo nacional de avaliação do rendimento escolar no sistema fundamental, médio e superior objetivando a definição de prioridades e a melhoria da qualidade de ensino”. Mas como avaliar a aprendizagem escolar num país continental com quase seis mil municípios, distribuídos em vinte e sete unidades estaduais?
Conforme Jamil Cury, “Sempre existiu na legislação o espaço para que estados e municípios mantivessem em seus currículos a cor local porque somos um país muito diversificado. Mas não é aí que está o problema. Ele está, sobretudo, na Constituição de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996, que deram aos municípios a prerrogativa de ente federativo, coisa praticamente única no mundo”. Diante desse dado, como viabilizar o imperativo legal de avaliar os sistemas de ensino, sem a existência de um currículo mínimo obrigatório? Ainda mais, cada unidade escolar podendo ter sua própria proposta pedagógica.
Além da ausência de uma base comum nacional, o maior desafio foi romper com a resitência dos professores em conceber a ideia de serem avaliados, mesmo que indiretamente no desempenho dos alunos, em especial os das universidades. Muitos movimentos anarquistas assumiram a tarefa de boicotar a realização dos exames, seja deixando as provas em branco ou fazendo piquetes em frente aos locais de realização.
Admito que, ainda na universidade, engrossei a turma da massa de manobra, para gritar contra o famoso “provão”, pois era uma imposição do método de qualidade total do toytotismo. Uma ação do governo neoliberal que pretendia privatizar as universidades públicas e submeter à educação escolar brasileira, as ideologias de mercado, neoliberais e outras tantas bobagens que os ideólogos não cansam de repetir.
A década de 90, na verdade, marca decisivamente os rumos da educação brasileira, seja pela nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996) ou pelas reformas do Estado que afetaram diretamente a educação, como exemplo a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), implantado em 1998. Substituído partir de 2007, pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB) que atende toda a educação básica, da creche ao ensino médio.
No bojo dessas reformas institucionais, sobressai a municipalização da educação vinculada à criação do antigo FUNDEF, de significativa alteração na composição e repasse de recursos financeiros para os sistemas de ensino, configurando-se numa reestruturação profunda, de definição prioritária entre níveis de ensino e esferas de governo. Assim, a União consolidara-se na responsabilidade pelo atendimento prioritário a educação superior; os Estados, o atendimento prioritário ao ensino médio, e aos municípios a educação infantil e ensino fundamental.
As reformas estatais empreendidas que redefiniram a responsabilidade dos entes federativos, frente aos sistemas de ensino, forjaram as condições para que a União restaura-se a atribuição de promover, conforme determina a legislação, a avaliação da educação básica e superior. Após quase duas décadas de realização contínua desse processo, tem se mostrado uma ação meritória, pois seria tolice acreditar que a educação deve seguir uma espécie de voo cego, para um destino indecifrável. Os dados produzidos, ainda que muito questionáveis, pelos métodos que adotam, mas tem servido como um referencial seguro para todos os setores da sociedade e da própria educação. Novos parâmetros comparativos surgem para elucidar os indicadores produzidos a cada exame sistemático, que apontam deficiências e avanços na qualidade do ensino das escolas públicas. Além de nortearem a necessidade do aprimoramento da formação de professores e na melhoria da política pública. Embora, tais dados, ainda sejam ignorados como uma informação relevante na elaboração das propostas pedagógicas escolares.
Numa realidade de tantos desafios a merecer sempre esforços, que transcendem o determinante financeiro, parece contraditório, a indiferença dos ditos profissionais críticos às informações do IDEB. Constata-se o predomínio generalizado do desconhecimento sobre as implicações e desdobramentos dessa informação no sistema avaliativo em curso. Pois, caso analisada a partir do esforço coletivo, serviria para revelar vários aspectos, que configuram a deficiência de ensino, as quais não dependem de fatores materiais para sua solução, mas de tomada de consciência da atuação desses obstáculos no desenvolvimento da aprendizagem de muitos estudantes, situações não identificadas que se somam a outros problemas e colaboram para muitos fracassos escolares.
Nesse contexto, de avaliação da educação brasileira instituida partir da última década do século XX, pode-se encontrar a proposta de currículo nacional nos documentos correspondentes, que apresentam a fundamentação teórico-metodológica e asseguram a definição dos descritores dos componentes do conhecimento, que são objetos de verificação, por meios de exames nacionais estruturados em competências e habilidades.
Nota-se que as competências e habilidades operacionalizam-se como transversalidade estruturante na organização didático-metodológica de todos os exames ou provas que integram os sistemas avaliativos nacionais, que vai da educação básica a superior. Assim, organiza-se o SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica), que compreende a aplicação a cada dois anos, da PROVABRASIL (exame integrante da ANRESC-Avaliação Nacional do Rendimento Escolar para os alunos concluintes do Ensino Fundamental I e II, nas disciplinas de Português e Matemática) e aplicação anual das provas do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio para os alunos concluintes do Ensino Médio, em todas as disciplinas do núcleo comum nacional) e o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES) que submete os alunos ingressantes e concluintes das graduações as provas do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (ENADE).
A solução para assegurar uma base de conhecimentos e saberes que pudesse ser objeto de avaliação orgânica e sistêmica, tem seus instrumentos didáticos assentados na elaboração e distribuição dos Parâmetros Curiculares Nacionais (PCN´s), atualizados recentemente em Orientações Curriculares Nacionais, as quais estabelecem a abordagem pedagógica dos exames nacionais. Além dessa estratégia, tem-se o reforço da Política Nacional do Livro Didático (PNLD) que distribui os livros para as escolas públicas do ensino fundamental, ampliada recentemente com implantação do Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio (PNLEM), que busca universalização de livros didáticos para os alunos do ensino médio público de todo o país. Os PCN’s, mais as OCN’s combinados à política nacional do livro didático configuram uma das dimensões estrututantes e fundamentais da consolidação de um Currículo Miníno Obrigatório Nacional.
Verifica-se o aprofundamento do processo de legitimação da proposta pedagógica do MEC, ao fato, de determinados índices adquirirem a posição de referencial de qualidade universal e único da educação pública. Os conceitos dos cursos universitários, obtidos no SINAES transformaram-se em critérios de enorme relevância diante da sociedade. A nota no IDEB tornou-se alvo de enorme atenção, seja dos críticos da educação ou dos governos que ao observarem a evolução na estatística, usam essas informações para justificar que estão cumprindo corretamente as suas ações e programas.
Além disso, a integração do ENEM ao Programa Universidade para Todos (PROUNI), recentemente alterado para Sistema de Seleção Unificado (SISU), exerce influência determinante na definição do currículo do ensino médio, tanto nas escolas públicas e privadas, pois ainda que os alunos concluintes das escolas privadas sejam excluídos dos benefícios do SISU, as Universidades Federais adotaram o ENEM como seu processo de seleção. Considerando-se as mesmas, ainda as maiores e melhores, transformaram a Matriz de Referência do ENEM, no currículo do ensino médio em todo o país. Especialmente, verifica-se a adoção radical dessa matriz nas escolas privadas, que atendem alunos da classe média, pois, desde o ensino fundamental e médio organizam os seus currículos e propostas pedagógicas, seguindo literalmente a teoria de aprendizagem estruturadora dos exames nacionais.
Mesmo nas escolas públicas, que atendem os alunos de menos foco nos vestibulares, é inegável a influência no currículo dessas escolas. Embora, muito distante daquela seriedade com que tem sido encarada a abordagem didático-pedagógica nacional pelas escolas privadas. As publicações oficiais da fundamentação teórico-metodológica que são enviadas pelo Ministério da Educação, em geral são abandonadas as traças nas bibliotecas escolares.
Muitos profissionais da educação, ainda desconhecem o SAEB e SINAES como sistemas de avaliação nacional e o seu eixo didático-estruturante baseado na teoria da aprendizagem das competências e habilidades, que está configurada nos livros didáticos oficiais, nas orientações curriculares da educação básica e na matriz de referência da PROVABRASIL, ENEM e ENADE.
Enquanto as escolas públicas, por diversas razões tem se mostrado incapazes de elaborarem suas propostas pedagógicas, os sistemas de ensino sob a influência das políticas educativas do Ministério da Educação, vão sendo definidos a partir de um projeto político-pedagógico universal, assentado na determinação de um currículo mínimo obrigatório nacional, objeto dos sistemas avaliativos vigentes.