Calvário – Neiva Pavesi

    Demorou a arrumar emprego. Dias difíceis esses, de comida pouca e choro de criança com fome. Caminhara quilômetros e quilômetros, dias e dias; o sol forte, um braseiro, lembrava sua terra calcinada. Só que aqui, via-se a fartura. Também a miséria, claro, que ninguém escapa desse cancro social. Preferia olhar a fartura, principalmente do mar. Um mar imenso, azulado, salgado. Pena... tanta água! Mas, se Deus, Nosso Senhor, havia feito assim, era assim que devia ser.

    Estava empregado! Salário mínimo, cesta básica, vale transporte; era o que ele merecia pelas doze horas diárias que passava entregando móveis. Só mesmo assim para conhecer os apartamentos, “as casas” de quem mora em cidade grande. Achava engraçado o povo morando um em cima do outro, as crianças sem espaço, feito passarinhos em gaiola.

    De volta ao cortiço falava das coisas bonitas que havia na loja. A mulher admirava-se de que alguém pudesse comprar tudo aquilo. Sua casa brilhava de limpeza. Como a sua alma. Era um homem puro, transparente, sabia por intuição que assim devia ser. Não era temente e Deus; amava-O simplesmente. Os quatro filhos, uma escadinha, eram o seu tesouro. Por eles, qualquer sacrifício seria pouco.

    Acostumou-se com a rotina de carregar o caminhão e descarregar os móveis nas casas dos compradores. Trabalhava cantando, afinal, a vida aqui, mesmo difícil, tinha suas compensações; aos domingos podia passear nos jardins da praia e jogar bola com as crianças na areia. Era um homem feliz!

    Numa tarde de entregas, no prédio de classe média, notou que a dona da casa olhava-o. Nordestino? Perguntou. Sim, senhora, respondeu-lhe, admirado por ela ter adivinhado.  Ingênuo, não lhe passou pela cabeça seu tipo físico marcante. Feita a entrega, enquanto os companheiros esperavam o elevador de serviço ele, prestimoso, acedeu ao pedido da “dona” e centralizou a mesa de fórmica branca, no ângulo desejado. Atrasou-se um minutinho, o suficiente para não descer junto com os outros.

    Dias depois foi chamado à gerência: havia uma queixa de furto contra ele. Ficou branco, abismado, sem fala. Aquela “dona” tão gentil, acusava-o de ter roubado um par de tênis no dia da entrega. Jurou ao gerente que havia um engano; ele não roubara nada! Chamados, os demais entregadores testemunharam a favor dele. Veio, então, a pergunta fatídica: “Todos desceram juntos, certo?” Acostumados com a verdade, responderam a verdade. O gerente dispensou-os e voltou-se para ele: jamais havia acontecido tal fato na firma. Não o deixou defender-se. Disse-lhe que não manteria um ladrão no quadro de funcionários. Que se desse por satisfeito, já que a “dona” não abrira B.O. contra ele. Que passasse no Departamento De Pessoal para acertar suas contas.

    Despedido por justa causa, saiu da loja com a alma em farrapos, alguns minguados reais no bolso e nenhuma idéia do que pudesse ser um B.O. Em estado de choque, sem acreditar no que lhe acontecera, sentiu na pele o peso da injustiça. O dia todo procurou a “dona” feito um louco, sem saber-lhe nome nem endereço. Vendo ser impossível achá-la naquela selva de pedra, sentou-se num banco da praia e, absorto, ficou olhando o mar até o entardecer.

    Voltou a pé para casa. Durante o trajeto sentiu o coração apertado, doído, machucado e um nó na garganta. Uma revolta surda foi aos poucos se instalando em seu peito e era tão grande, tão grande que sentiu o coração prestes a explodir. Chorou. Muito. Lágrimas intensas, graúdas, quentes, amargas. Nada contou à mulher, nem lhe explicou por que estava tão calado. Durante dias manteve o horário de sempre, como se estivesse trabalhando.

    Recomeçou, em desespero, a busca pelo emprego cada vez mais difícil. Já não sorria, nem cantava. Tornou-se taciturno e, de cenho carregado, testa vincada, tentava resolver o enorme problema de conseguir manter as despesas. Aos poucos, o dinheiro foi minguando até secar e a fome recomeçou a rondar sua família de forma assustadora. Dias depois ouviu a caçula pedir leite e a mulher dizer-lhe que não tinha. Um ódio brutal transformou-o. Foi então que, em gesto extremo, aceitou a oferta de “emprego” do traficante da rua que sempre o assediara pelo seu perfil de inocente útil: um homem comum, despercebido em qualquer lugar. Um ninguém.

    Perdeu a inocência, rompeu sua ligação com Deus, ao enredar-se na teia fria, viscosa, tenebrosa, mortal. Um caminho sem volta.

    Tempos depois, a “dona” avisou a loja de que havia encontrado o par de tênis na casa do filho mais velho, que o levara quando ali estivera na hora do almoço...