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O VELHO DO PANTANAL.doc
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          O VELHO DO PANTANAL

                                                                   

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Janeiro de 1988, aqui começou minha história ou minha aventura, foi  quando acompanhei um amigo, teatrólogo ao pantanal   sul mato-grossense com o objetivo de  fazer uma pesquisa para a criação de uma peça de teatro sobre os animais do pantanal. Durante cinco dias estivemos acampados numa bela fazenda na região do Taboco onde tive a oportunidade de conhecer de perto a intensidade e a importância desse ecossistema brasileiro.

Fomos convidados pelo capataz   para  ficarmos   na sede da fazenda onde poderíamos ficar mais à vontade.

Na verdade nem poderia dizer que estávamos acampados, considerando o conforto existente naquela imensa casa.

Naquele primeiro dia, não consegui sair das proximidades da fazenda, passei horas apreciando a paisagem, a rústica e maravilhosa paisagem, realmente era um lugar fantástico.

A grande casa como era chamada, possuía uma imensa  varanda, com redes espalhadas por todos os lados.

Sua arquitetura lembrava os antigos casarões da época dos senhores de engenho, rústicas e belas, e para completar a beleza daquele lugar, era cercada por flamboians de todas as cores.

Nos fundos, a menos de cem metros de distância, tinha um grande lago que os moradores do lugar chamava de corixão dos jacarés.

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O meu  primeiro intuito foi de aproximar daquele    lago que mais parecia um grande viveiro de pássaros e quando percebi estava na sua beira, perplexo.                                                                                              

Confesso que minha perplexidade não era somente em relação à beleza em ver tantos jacarés amontoados tomando sol ou por aquele colorido nunca visto formado por milhares de tuiuiús, garças, socos, mas por ter em minha frente um verdadeiro retrato da natureza, como era grandiosa e complexa a criação divina. Naquele momento me senti um grão de areia, nem consegui me enxergar naquele vasto mundo de sonhos.

Sempre tive fé em Deus, mas a partir daquele momento tive mais certeza de sua grandiosidade e passei a respeitar e amar ainda mais os animais, pois  fizeram-me sentir num paraíso.

Derrepente senti a presença de meu amigo ao  lado e sai da perplexidade.

Ele disse que estava preocupado comigo pois me chamara vária vezes e não respondi.

Eu disse que realmente não havia escutado o seu chamado.

Disse-me que ia andar pelas redondezas para pensar sobre seu

 trabalho e me convidou, mas preferi ficar. Ele não se incomodou e saiu para seu passeio.

Aquele dia me pareceu  pequeno demais, pois quando percebi o sol já se escondia e a noite se aproximava e eu ainda estava ali, sentado sob uma árvore que nem tinha percebido estar ali.

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Percebi também que se aproximava um senhor, que sorridente parou ao meu lado e perguntou se era a primeira vez que via o pantanal.

Eu disse  que estava certo, realmente esta era a primeira vez que eu via aquela maravilha.                                                                                          

Perguntei quem era ele e me disse ser um peão da fazenda.

Minha curiosidade levou-me a perguntar sobre seu trabalho e ele foi muito simpático ao me detalhar  um pouco sobre  sua vida.

Disse-me que a vida de um peão do pantanal é muito gostosa, porém difícil e perigosa. Eram muitos os perigos que enfrentava, afirmou ele, disse-me que não conseguia acostumar  com a solidão.

Sugeri então que se casasse, ele deu risada e disse que as poucas mulheres que tinha já eram casadas.

Perguntou então o que eu e meu amigo fazíamos ali e expliquei a ele que estávamos fazendo  uma pesquisa para escrever uma   peça  de  teatro, na verdade meu amigo é escritor, eu apenas o acompanhava.

Com curiosidade me perguntou se ele era famoso e eu disse que embora não fosse muito famoso, já havia escrito várias peças de teatro em São Paulo.

Ficamos em silêncio por algum tempo até que ele sugeriu que se quiséssemos escrever uma história, deveríamos conhecer o velho do pantanal.

Velho do pantanal, pensei, já tinha ouvido uma lenda sobre esse velho. Conta-se que era uma figura mística   e  possuía   poderes  mágicos,  andava  pelo

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pantanal protegendo os animais e dizem que também era curandeiro. Segundo o que se sabia a respeito, ele era muito idoso, barbas longas e brancas e o mais incrível era que ele se transforma em sucuri e outros animais.

Fiquei curioso sobre esse velho e quis saber mais a respeito. Perguntei se ele morava sozinho e o que ele fazia.

O velho peão disse que seu nome era Tobias,  morava  com um filho e que o patrão deu um pedacinho de terra onde ele levava a vida.

Disse-me também que era muito estranho, não gostava muito de visitas e preferia conversar com os bichos.

Então ele me explicou que  criava um monte de bichos em sua casa e alguns vira-latas.

Perguntei como faria para chegar lá e ele me indicou,  apontando para a direção de uma estrada e que eu poderia segui-la até chegar numa ponte de madeira, após atravessá-la, pegaria um caminho à esquerda que eu chegaria lá.

      Agradeci ao peão dizendo  que iria lá no outro dia.

Terminamos nossa conversa e voltei para o casarão onde meu amigo já havia inclusive tomado banho.

Contei para ele a conversa que tive com o velho do pantanal e convidei-o para conhece-lo.

Disse que não poderia, pois iria conhecer um ninhal.      

      Embora tive vontade de conhecer os famosos ninhais, ficaria para outra oportunidade.     Amanhã quero conhecer o velho do pantanal. – pensei.

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Ele me perguntou sobre esse velho, então contei o que sabia.

Após tomar um delicioso banho a moda fazendeira, fomos jantar.

Dona Jerônima era a cozinheira  da fazenda, uma senhora de uns sessenta anos, não sei se índia, boliviana ou bugra como eram chamados os descendentes de índios.

Era muito simpática e conversadeira e seu jantar era delicioso. Uma coisa me chamava a atenção naquela mesa, havia pelo menos seis tipos diferentes de pratos e não tinha carne, detalhe  esse, que  também percebi durante o almoço, considerando que estávamos no pantanal, imaginei que a alimentação seria a base de carnes, inclusive de animais selvagens já que existem tantos por  ali.

Resolvi então acabar com minha curiosidade e perguntei se ali não se comia carne.

Ela disse que: quando o patrão vem da cidade grande ele manda o peão Jenário carnear uma vaca  comem durante muito tempo.

Continuei insistindo sobre a carne e perguntei sobre as de animais selvagens.

Ela disse um Deus me livre e guarde e que era completamente proibido a caça naquela fazenda.

Então aqui se preserva a natureza – pensei- isso vem confirmar o que eu já tinha ouvido falar que ao contrário do que muitos dizem, realmente existe fazendeiros que preserva a fauna.                                                                            

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Isso era realmente maravilhoso, pena que nem todos    eram assim. 

Terminamos o jantar em silêncio e fomos para o varandão da casa e ali ficamos conversando por um bom tempo, até que meu amigo resolveu dormir pois disse estar cansado e iria levantar bem cedo.

Fiquei então sozinho, olhando a escuridão com apenas alguns pontos luminosos vindos das casas dos moradores.

Foi nesse barulho ensurdecedor que resolvi dormir, afinal teria que andar bastante no outro dia.

Dizem que a noite é silenciosa, mas ali a realidade contrariava essa teoria, eram fervescentes, os sons vinham de todos os lados e eram às vezes sinistros, mas por outro lado diferente e encantador, milhares de espécies de grilos e outros insetos na lagoa eram os sapos, aves noturnas também participavam daquela sinfonia, era realmente relaxante. Foi nesse barulho ensurdecedor que resolvi dormir, afinal teria que andar bastante no dia seguinte, embora não pretendesse levantar muito cedo.

         

SEGUNDO DIA

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Deitei na noite anterior, pensando em não levantar com as galinhas,   mas  não  foi  possível,  o  barulho  matinal  da fazenda  não  me  deixou  dormir  e o cheiro do café  fez-me levantar ainda mais rápido.                                                                      

Já na cozinha, saboreamos alguns deliciosos pãezinhos de queijo, chipa e tomamos leite e após o café, meu amigo, ainda insistiu para que eu o acompanhasse na sua visita aos ninhais, mas preferi seguir minha própria aventura.

Indaguei mais uma vez sobre o caminho e saí em busca do velho e suas lendas.

A estrada era cercada por uma espécie de cerrado, no início eu estava além de ansioso, com um pouco de receio, então pensei, que talvez não estaria sendo prudente saindo sozinho naquele lugar, poderia ser perigoso, afinal era o tão famoso pantanal mato-grossense e pelo que sempre ouvi falar, existia . muitas onças. Esse último pensamento me apavorou, pensei em voltar e pedir ao capataz um cavalo e assim eu iria com mais segurança.

Naquele momento o silêncio era pesado e me senti realmente só, num planeta desabitado. Ouvi um barulho como o bater de asas me fez tremer da cabeça aos pés, olhei para o alto e um casal de tucanos voava em minha frente, era bonito  ver aqueles pássaros cujo bico colorido era quase maior que o corpo.

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A presença desses pássaros, que sentaram numa árvore próxima encheu-me de coragem e  decidi  seguir em frente. Peguei um pedaço de pau que estava na beira da estrada e segui.

Comecei então a perceber como era grande os números    de    rastos    de    animais    que atravessavam o caminho, comecei  a  tentar  descobrir  que  animais  eram: cateto, tatu, guará, veado, onça, Opa!, onça não – pensei.

Quanto mais caminhava maior era ansiedade e a admiração por aquele lugar.

Notei, então, que acabou o cerrado e a paisagem agora era de várzeas com vários corixos em volta do caminho.

Eram muitos os pássaros que se alimentavam dos peixes, tuiuiús, garças de todos os tipos, socós e logicamente um amontoado de jacarés tomando sol.

O que  chamou muito a atenção foi a beleza das flores de camalotes, planta aquática, que cobria boa parte das lagoas e naquela época estavam todas floridas mais parecia um jardim selvagem.

Por alguns minutos fiquei parado, apreciando e admirando aquele lugar, tinha a certeza que  deixaria saudades e uma coisa era certa, aquela era a primeira vez  em que eu visitava o pantanal mas não seria a última.

Resolvi continuar a caminhada...

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Já havia andado talvez uns dois mil metros e a paisagem já tinha mudado de característica, era novamente cerrado, um pouco mais fechado, continuei andando, era muito grande o número de pássaros nas árvores, tucanos, ciganas, araras azuis, vermelhas e amarelas, é lógico que naquele    momento eu não reconhecia a maioria das espécies, somente

depois fiquei sabendo seus nomes, exceto as araras e tucanos, já eram conhecidas.

Envolto em meus pensamentos, um pavor tomou conta de   mim,   um    veado    campeiro   apareceu   em   meu caminho, apenas atravessou o caminho mas foi o suficiente para um grande susto.

Parei e pensei que talvez alguma onça estaria atrás dele fiquei paralisado com esse pensamento mas logo percebi que estava enganado ele deve ter se assustado comigo também continuei meu caminho...

A estrada parecia não ter fim, fazia quase duas horas que estava andando e cadê a tal da ponte de madeira que nunca chegava?

Após uns quinhentos metros percebi estar andando em declive notei então que o rio estava próximo.

Realmente lá estava o rio, o famoso Taboco, não era grande, talvez uns quinze ou vinte metros, mas dizem que é muito profundo.

Parei sobre a ponte, já bastante gasta pelo tempo, resolvi sentar um pouco e apreciar os movimentos das águas, até que alguma coisa emergiu em baixo de onde eu estava, era ma ariranha, depois outra, outra, eram várias e olhavam para mim com curiosidade. Cometi um

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grande erro em não trazer uma máquina fotográfica para registra aquele momento seria o máximo.

Aos poucos foram se afastando e desaparecendo nas águas, então levantei e segui meu caminho, agora beirava o rio.

Era um caminho bem diferente apenas um trilheiro cercado hora por mato, hora por um capim alto fiquei mais atento e com o olhar fixo no chão, o velho peão me havia dito que na beira desse rio havia muitas cobras e uma delas era a famosa boca-de-sapo que segundo ele era tão venenosa que quando mordia alguém,   saia  de  baixo  para   o mordido,  em  guestão, não caísse sobre ela. Era apenas uma lenda pantaneira.

Nesse pensamento, continuei o caminho até que outro susto aconteceu, aquilo estava sendo um teste para meu coração, um bando de capivaras assustaram–se e com gritos  estranhos saltaram para a água mais uma vez senti um arrependimento em estar ali sozinho, mas fui em frente , devia estar perto.

Andei por mais um quarto de hora e notei um ambiente diferente, ouvi o latido de cachorro o que confirmou que estava próximo e também que ainda teria que enfrentar alguns vira-latas. A minha esperança era acreditar no velho ditado de que cão que muito late não morde.

Assim deparei com a casa do velho, seu nome era Tobias, o velho do pantanal. Ali estava em minha frente, não sei se uma choupana, um casebre, um barraco, sei lá, mas era um lugar interessante.

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Alguns cães ladravam se aproximando, mas ao mesmo tempo abanavam o rabo e isso me animou mais fui  chegando devagar, afinal depois de tantos sustos pelo caminho não seriam aqueles dóceis animais que iriam estragar minha aventura.

Aproximaram-se e começaram a me cheirar e resolveram não morder, pois perceberam que eu era amigo, um amigo amedrontado.

Ouvi uma voz rouca – vai deitar guará, jacaré, cabeção.

Então percebi que eram três os cães, aproximei mais e cumprimentei o homem.

Ele respondeu  desconfiado  e  perguntou  quem eu era e o que  estava fazendo ali.

Disse a ele que estava fazendo uma visita. Aproximei-me.

Apontou para um tronco onde com certeza era um banco, sentei e ele também sentou num banco de madeira rústica.

Expliquei a ele o motivo de minha presença  e de meu amigo na fazenda e pareceu ficar mais à vontade.

Por um momento fiquei olhando para ele e pensando que seria difícil definir sua idade, setenta, oitenta, noventa anos.

Sua aparência era de um homem solitário, sofrido com um olhar triste sua grande barba branca confundia ainda mais, suas roupas surradas porém limpas, semblante  pacífico, de um bom homem.

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Perguntei  se não  sentia muito só, morando naquele lugar, mas ele pediu para que eu olhasse em volta para ver que não estava só.

Só aí me dei conta de algo fantástico nas várias árvores que cercavam a casa, laranjeiras, mangueiras, jaqueiras, abacateiros e outras árvores, havia um número muito grande de araras, papagaios, periquitos e outros pássaros como os belos galos-de-campina.

Estava olhando para aquelas árvores quando alguma coisa encostou em minhas costas, virei assustado e dei de cara com um cervo, estava ali, junto comigo, então comecei a perceber que realmente   ele   não   poderia   estar só, era  grande  o  número de animais,  convivendo com ele.

Estava encantado em ver todos aqueles animais, na minha frente, um cateto sob a sombra de uma árvore, um casal de capivaras que tomavam sol de pernas abertas e barriga para cima, mais ao lado, um casal de tuiuiús, parados olhando para o chão como se estivessem pensado na vida.

Era realmente impressionante aquela cena.

        Perguntei se  criava aqueles animais desde pequenos e disse que muitas vezes os encontravam perdidos, desgarrados da mãe, doentes, com fome e então trazia para sua casa onde cuidava e ali passavam a viver.

        Segundo ele muitos animais sempre voltam para o mato para se alimentar durante o dia, mas estão sempre de volta para sua casa. Ali eles estavam livres de caçadores.

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Nesse momento o cervo se aproximou do velho e lambeu seus braços num gesto de carinho e agradecimento.

      Eles são muito carinhosos com ele – pensei.

Durante alguns segundos ficamos em silêncio como se tentássemos descobrir o pensamento um do outro.

Muitas coisas passaram pela minha cabeça naquele momento como por exemplo. Qual seria sua idade?  Porque aquele olhar triste? Parecia ter perdido alguma coisa importante.

Desviei meu olhar para os dois tuiuiús que ainda estavam olhando para o chão, pareciam duas estatuas.

Resolvi quebrar o silêncio e perguntei porque aqueles tuiuiús estavam naquela posição. Ele me disse que era de tristeza e me contou porque isso acontecia.

Disse que há muitos anos atrás um casal de índios  alimentavam.

Depois que os índios morreram, foram enterrados e cobertos com monte de terra. Os bichos então ficaram em cima do monte olhando para baixo esperando brotar comida. Como não aconteceu, ficam até hoje olhando para a terra com tristeza.

Ali estava mais uma lenda pantaneira – pensei.

Perguntei então como ele se alimentava e como conseguia conviver com animais selvagens, isto é, aqueles que viviam nas matas.

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Mostrou-me então sua plantação de mandioca, milho, e de feijão. Disse–me ainda que o patrão sempre que vinha trazia outros alimentos.

Fiquei sabendo também que ele não comia carne de caça, somente peixe já que era farto naquele rio.

Algo interessante é que segundo ele do outro lado do rio tinha muitas cobras e sucuris mas, não atravessavam para o seu lado, porque ele as espantavam com reza brava.

No meio daquela conversa, percebi que estava com fome, resolvi então comer o lanche que havia levado da fazenda, na verdade fui prevenido já que não sabia se lá eu poderia comer alguma coisa.

Ofereci uma parte para o Tobias, mas disse que já havia almoçado,  lá eles costumam comer bem cedo.

Durante meu lanche, o velho Tobias indagou sobre minha vida, onde morava, o que fazia, minha profissão, enfim, fez uma série de questionamentos e percebi que foi bom pois passou a se sentir mais seguro.

Mais uma vez pensei que alguma coisa ruim estava acontecendo com ele, vendo aquela tristeza que estava sempre estampada em seu rosto. Pensei que seria alguma coisa com seu filho, afinal eu ainda não vi o tal do filho.

Resolvi então perguntar sobre ele, sua idade, seu nome, onde estava?

Disse-me então que ele deveria ter uns quarenta anos, seu nome era João e estava no mato em busca de filhotes de arara, mas não tinha voltado ainda.

Então esta era a sua preocupação. – pensei.

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Mas preocupou-me o fato de tirar filhotes do ninho e questionei o velho esperando com ansiedade por uma resposta aplausível e tive, explicou-me que numa região a mais ou menos dois quilômetros dali, as araras faziam ninhos e alguns peões de outra fazenda tiravam para vender, assim que descobriram isso, resolveram antecipar aos peões e tirar os filhotes pois terminariam de criá-los  e os libertariam. Isso explicava o grande número de aves espalhadas pelas árvores próximas.

Achei louvável essa atitude e esse fato deu-me a certeza de que a ignorância humana nem sempre está nas pessoas mais simples.

Por fim  disse que sua preocupação era porque seu filho não havia voltado e tinha saído ontem à tarde e estava com mau pressentimento. Eis aí o motivo de sua tristeza.

Decidi então me oferecer para ajudá-lo a procurar seu filho, embora Tobias achou que seria perigoso, mas acabou concordando.

Entrou em sua casa e logo saiu com um machete na cintura, machete é um facão mais longo, chamou os cães que alias já estavam esperando pois sabiam que iriam sair. Peguei meu pedaço de pau e saímos por um caminho que acompanhava o leito do rio e assim foi por um bom tempo até que aos poucos foi se afastando do rio. Eu estava admirado em ver aquele velho, magro, cuja idade nem se calculava andar por   aquele  mato  cheio de obstáculos.

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Minha dificuldade era bem maior que a dele.

Ele avançava lentamente mais firme, os cães corriam sempre em sua volta e notei que ele tinha o cuidado de não deixá-los distanciar.

Às vezes ele parava, permanecia em silêncio por um tempo como se tentasse ouvir alguma coisa e pela primeira vez chamou pelo filho. – uma, duas, três vezes – nada, ninguém respondia, os cães também latiram como se chamassem por João – este era o nome do filho .

Andamos por mais ou menos quatrocentos metros, parou e chamou novamente pelo filho, mas nada aconteceu.

Chamou por um nome que até então eu desconhecia, aí soube que um cão estava com seu filho, cujo nome era malhado.

Então ele se virou para mim e disse que já estava tarde e devíamos voltar e que no outro dia sairíamos mais cedo  para uma nova procura.

Voltamos e me cortou o coração ao olhar para Tobias e ver que seu rosto estava ainda mais triste e preocupado.

Chegando em sua casa, resolvi que deveria voltar para a sede da fazenda pois tinha uma longa caminhada pela frente. Despedi de Tobias prometendo voltar no outro dia o mais cedo possível e fui embora.

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Cheguei na sede já eram quase dezessete horas. Encontrei com meu amigo sentado à beira do corixão começamos a conversar sobre nosso dia.

Perguntei sobre os ninhais e disse que era maravilhoso, fantástico, nunca vira nada igual, eram muitas árvores cobertas por pássaros e ninhos, milhares de garças, socós, tuiuiús assentado e voando sobre as copas e dentro das lagoas. Aproveitou para tirar muitas fotos.

No dia seguinte ele iria a um passeio de barco pelo rio Taboco, onde seria  possível ver muitos animais, inclusive onça.

Convidou-me para ir junto mas disse que iria voltar na casa do velho Tobias, para ajuda-lo a encontrar o filho e assim expliquei a ele sobre o desaparecimento do rapaz.

Segundo ele, iriam passar em frente à casa de Tobias, mas desceriam bem abaixo, e na volta poderiam parar e me dar uma carona de barco, achei legal, assim conheceria o rio e não me cansaria tanto na volta.

Pedi que ao passar por lá, se eu não tiver voltado, que esperasse um pouco.

Terminado a conversa, voltamos para a casa grande, tomamos banho, jantamos e fomos dormir, pois tínhamos que levantar de manhã cedinho.

TERCEIRO DIA

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Levantei às cinco horas, tomei meu café da manhã, a bondosa  senhora preparou-me um reforçado lanche e peguei o caminho. O dia estava começando a clarear.

O amanhecer na fazenda era mágico, nunca tinha visto nada igual, era como se a vida se despertasse naquele momento e saudasse aquele dia maravilhoso que chegava. Mais um dia vivido e era preciso agradecer a Deus. O som dos pássaros mais parecia a sinfonia de uma orquestra.

Caminhei mais rápido do que no dia anterior, pois era importante chegar o mais cedo possível e pensando nisso, pedia a Deus que nos ajudasse a encontrar o filho de meu mais novo amigo.

Quando cheguei na casa de Tobias, ele já estava me esperando de machete na cintura, nos cumprimentamos e saímos em seguida, logicamente nos acompanhavam os cães guará, jacaré e cabeção, o que não conseguia entender, já que o cão não tinha uma cabeça desproporcional.

Quando chegamos ao mesmo local em que paramos no dia anterior, ele parou e disse que seria melhor mudar de direção para desviarmos de um grande lago que tinha pela frente.

Andamos nessa direção por mais quinhentos metros e o velho Tobias parou como se ouvisse algum som.

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Então chamou pelo cão que acompanhava o filho por várias vezes até que se ouviu um latido bem distante.

Ele começou então a assobiar como se de onde estivessem, os cães entenderiam.

Outro latido, agora mais perto. Era o malhado disse ele.

Tobias disse alguma coisa para os cães que saíram em disparada por entre o mato e na direção do latido.

Era impressionante como o homem e o animal pode se entender e criar entre si um vínculo de amizade que dificilmente acontece entre os homens.

Esperamos por dez minutos, os cães voltaram acompanhados do malhado.

Malhado que ainda não me conhecia, olhou-me  como se estranhasse minha presença mas o velho o acalmou com alguma palavra que não entendi.

Aconteceu então algo que realmente não esperava, o malhado parou em sua frente, olhou para seu dono e começou a latir sem parar.

Tobias deu um passo em sua direção  e o cão virou-se para traz como se o chamasse. Assim ele fez, ou melhor, fizemos, o cão saiu por entre o capinzal e o seguimos.

Desta vez andávamos mais rápido para acompanhar os cães que seguiam a mais ou menos trinta metros a nossa frente, às vezes olhavam para traz e paravam um pouco sabendo que o velho não podia acompanhá-los tão depressa.

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Aos poucos saímos do capinzal e entramos numa espécie de cerrado, andamos por quase uma hora até que novamente mudou de cenário, estávamos

agora numa espécie de várzea, com muitos corixos rodeados por uma mata não muito espessa.

Chegamos até um grande corixo e começamos a contorná-lo, após uns cem metros havia uma grande árvore e lá os cães pararam e latiam sem parar, era um latido diferente, quase que um uivo de lobo triste.

Nos aproximamos mais e foi possível então ver João,o filho do velho do pantanal.

Estava encostado no tronco daquela imensa árvore com a cabeça caída de lado e logo percebi que estava morto. Bandeira o outro fiel companheiro não saiu de seu lado, estava deitado com a cabeça sobre suas pernas e gemia baixinho era assim que os cães choravam. Os outros se acercaram do corpo e ficaram olhando-o como se despedissem do amigo.

Era incrível como o corpo estava intacto considerando que faziam pelo menos dois dias que havia morrido, logicamente o cão o protegeu. Era triste ver aquela figura do velho homem ajoelhado sobre seu filho. Chamou-o como se acreditasse estar vivo ou apenas adormecido. Silêncio.

Debruçado, chorou como criança, com voz rouca disse não ser justo que levassem seu filho ainda jovem pois ele era um velho e já havia vivido o bastante. Depois olhou para o alto na esperança de encontrar seu Deus que se manifestou no vôo suave de uma garça, uma garça muito branca que voando em sua frente  pousou

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no galho de uma árvore próxima. Era como se falasse que Deus era justo e sabia o que fazer, e que ele

deveria continuar vivendo no silêncio das matas, entre seus animais, no meio do pantanal.

Eu olhava perplexo para aquela cena a qual jamais imaginei um dia fazer parte, algumas lágrimas rolaram em meu rosto era muito triste estar ali naquele momento.

Vários minutos se passaram, fiquei em silêncio respeitando a dor de meu amigo, mas era preciso fazer alguma coisa, tínhamos que levar o corpo para sua casa e dar a ele um enterro digno.

Não imaginava como levar aquele corpo pesado somente nós dois.

Aproximei-me de Tobias, coloquei minhas mãos sobre seu ombro e disse que deveríamos pensar numa forma de levá-lo, mas ele apenas olhou para mim e nada disse.

Lembrei então que meu amigo iria passar pela sua casa com o barco eu poderia voltar até lá, esperar por eles e pedir ajuda talvez essa seria a única alternativa.

Passei, então, essa idéia a ele mas apesar de todo aquele sofrimento ainda conseguia raciocinar bem.

Disse-me que se o barco iria descer bem abaixo de sua casa, não deve ter voltado ainda e que por incrível que pareça o rio passava bem próximo de onde estávamos não mais que duzentos metros a nossa frente e que eu poderia esperá-los na barranca do rio.

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Achei ótimo e fui ao encontro do rio e realmente encontrei-o a uns  duzentos  metros. Como  eu  poderia  imaginar que ele passava tão perto de onde estávamos. – pensei-.

Chegando à beira do rio, me acomodei sobre o galho de uma árvore que caia sobre o leito, ali me sentiria mais seguro e fiquei por várias horas nem imaginei quantas, pareceu-me uma eternidade até que ouvi o ronco de um motor que se aproximava.

Desci então do galho e fui para a beira do rio e avistei o barco que estava meu amigo, agradeci a Deus por não ter perdido aquela oportunidade, chamei-os e encostaram o barco.

Meu amigo assustou-se ao  ver-me naquele lugar sozinho, então contei tudo o que aconteceu e preocupados desceram do barco e me acompanharam até onde estava o Tobias e seu filho morto.

Ao nos ver, o velho agradeceu a Deus e também a mim por ter conseguido encontrá-los.

Levamos o corpo para o barco,  também os cães e voltamos para casa.

Chegando em sua casa, o piloteiro sugeriu que levasse o corpo até a fazenda para sepultá-lo, mas Tobias discordou, afirmando que seu filho desejava ser enterrado em baixo do flamboiam que por coincidência estava todo florido. Assim fizemos e respeitamos sua vontade, seu filho continuaria perto dele. Após o sepultamento de seu filho ainda ficamos por algum tempo e resolvemos ir  embora,  já  era  tarde prometi a Tobias que voltaria no outro dia  para conversarmos mais um pouco e nos despedirmos.

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A viagem de volta não conseguiu  proporcionar belos momentos, pois o clima ainda era de tristeza e assim chegamos na sede da fazenda.

QUARTO DIA

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Dessa vez meu amigo quis me acompanhar, então voltamos à casa de Tobias.

Lá estava ele sentado num tronco, seus cães estavam deitados a sua volta, todos estavam tristes. Sentamos e começamos a conversar. Olhei para os cães e tentei descobrir o significado de seus nomes, percebi que o guará representava um lobo que inclusive está em extinção; o jacaré um dos animais mais conhecidos do pantanal; o malhado representava a onça pintada; o bandeira o tamanduá bandeira, mas e o cabeção, pensei, que animal do pantanal possuía uma cabeça grande? Resolvi então tirar a dúvida com o dono o que me disse ser a cobra cabeça-de-sapo que segundo ele, tinta a cabeça desproporcional.

Conversamos durante algumas horas e resolvemos nos despedir de Tobias.

Quando o abracei, não consegui dizer muitas coisas, mas ele pareceu ter entendido minha emoção.

Quanto a ele apenas disse que se um dia puder que eu volte a visitá-lo.

Estive com ele durante três dias mas tive a impressão de conhecê-lo há muito tempo.

Acenei para os cães e entenderam que eu estava indo, os valentes e fiéis animais abanaram os rabos num sinal de despedida.

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Olhei mais uma vez em minha volta e ali estavam as araras e papagaios em sua algazarra, os tucanos em busca dos inúmeros frutos existentes no quintal, e os belos galos  de  campina saltando nos arbustos. No chão estavam os bichos, amigos de Tobias, inclusiva os tuiuiús que como sempre, olhavam para o chão.

Aquele lugar me deixaria saudades.

Já na estrada voltamos em silêncio não tínhamos muito que falar apenas a apreciar.

Na ponte estavam novamente as ariranhas; nos lagos, pássaros em milhares e jacarés tomando sol.

Depois de algum tempo um veado campeiro atravessou em nosso caminho proporcionando outro susto.

Vivi ali uma história real, fantástica e triste.

Naquele momento eu estava deixando para traz um símbolo da preservação da vida um velho que não consegui decifrar sua idade. Um verdadeiro filho  do pantanal.

Assim chegamos a sede, já era tarde tomamos banho meu amigo preferiu fazer algumas anotações para seu trabalho e eu fui dormir, estava muito cansado.

QUINTO DIA

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Nesse dia não levantei tão cedo, dormi até às oito horas iríamos viajar de volta às dez horas.

Arrumamos nossa bagagem e ficamos prontos esperando chegar a hora votaríamos de carona até a cidade de Aquidauana depois pegaríamos um ônibus para Campo Grande.

Como ainda tinha um bom tempo de espera fui mais uma vez até o grande corixo dos jacarés, sentia a necessidade de vê-lo de perto mais uma vez e silenciosamente despedi-me daquele santuário de liberdade.

As dez, chegou nossa carona, despedimos de todos e partimos sem palavras e com tristeza.

Às vezes precisamos de uma vida toda para aprender alguma coisa, mas às vezes basta uma palavra, um gesto ou uma história.

A vida é realmente uma grande escola.