Fúria – Neiva Pavesi

    Esta é uma obra de ficção inspirada na forte ressaca que sacudiu a orla santista no ano de 2000.

Santos, 14 de dezembro de 2000.

    Stélio espreguiçou-se gostosamente. A claridade da manhã jorrava pela janela envolvendo-o em seu leito de preguiça. Férias! Estava em férias! Finalmente, depois de praticamente dois anos de serviço, um descanso merecido. Rolou na cama e pegou o relógio. Tão cedo! Esses dias de verão são realmente encantadores! Tinha praticamente vinte horas para desfrutar as maravilhas da orla santista.

    Tentou dormir mais um pouco. Acostumado, porém, ao horário rígido de trabalho, não conseguiu. Levantou-se e foi até o terraço. Seu olhar, maravilhado, abrangeu toda a baía de Santos.

    Meu Deus! Que paisagem! Que mundo lindo! O céu azul, o sol brilhando, o mar calmo, as ondas mansas indo e vindo, num bailado eterno... Sua imaginação alçou vôo sobre o mar ondeante que os séculos não envelhecem. Viu um navio sendo engolido pela linha do horizonte e lembrou-se das antigas crenças: imaginou o mundo como uma tábua rasa e o navio caindo, caindo, no abismo sem fim de nossos ancestrais.

    Apesar do calor, um arrepio percorreu-lhe a espinha: “Stélio, Stélio, você já admitiu que estava errado, portanto, esqueça o assunto”. Ligou o som e, cantarolando, preparou-se para veranear.

    Passou o dia na praia, aproveitando seu início de férias. Era uma pessoa comum, igual a milhares que transitam, apressadas, pelas ruas do mundo. Agora, então, na tarde quase noite dessa esplêndida quinta-feira, de chinelões e camiseta, bermudão desfiado, quase ridículo, tornou-se invisível aos olhos dos transeuntes do calçadão.

    Deliciou-se com um lanche tão comum quanto ele: cachorro quente e água tônica. Sentou-se num banco do jardim da praia e ficou olhando o mar. Como era lindo, sereno. Um navio, de bandeira norueguesa, saiu do estuário e, vagarosamente, singrou a imensidão azulada que leva a infinitos caminhos. Teve, de novo, a sensação de frio na espinha.

    - C...........! – resmungou – pára com isso, cara, senão você vai ficar maluco.

Santos, 15, 16, 17, 18 de dezembro de 2000.

    O mesmo sol, o mar, os navios, a praia, a moleza do calor, o refrigério das sombras, a vista maravilhosa do pôr-do-sol na tardinha, quase noite, de mais um verão. Que delícia de férias! Estava-se acostumando com a rotina de ficar à vontade, lagartear na areia, tomar banho de mar, nadar, passear no calçadão, beber água de coco. Desviava os olhos dos navios que partiam. Ou que chegavam. Evitava pensar no assunto. Gostaria de apagar da mente sua intrínseca competência que o levara a supor saber mais que outros.

Santos, 19, 20, 21, 22, 23, 24 de dezembro de 2000.

    Havia-se enturmado com Fábio, Toni, Nísia e Pedrão. Passavam a maior parte do tempo jogando conversa fora. Haviam decidido o destino do país e do mundo. Escalaram os mais conhecidos times de futebol. Cantaram todas as músicas imagináveis. Levou os novos amigos para conhecerem a cobertura onde morava, num dos prédios mais belos da praia da Aparecida.

    Na noite de Natal, convidou-os para uma ceia caprichada, regada a champanhe francês. Ao trocarem informações, ficaram admirados quando o souberam profissional de alto nível do Centro Meteorológico de São Paulo. Bateram palmas,  deram hip-hurra para ele, numa euforia descontraída. Estavam felizes: era tempo de férias e havia apenas a preocupação imediata de degustar o finíssimo champanhe.

    - E qual é seu serviço? – quis saber Nísia.

    - Não senhora, nada de falar de trabalho... já tive dores de cabeça demais com ele... – respondeu Stélio.

    - Por quê? Conta pra gente... – ronronou ela.

    Ele desconversou, preferindo fazer-lhe um carinho, enquanto os outros aplaudiam. Dormiram ali mesmo, com as janelas abertas, muito à vontade.

Santos, 25 de dezembro de 2000

    Stélio foi o primeiro a acordar.

    Olhou o mar, o sol, as pessoas que caminhavam na praia e, novamente, sentiu aquele arrepio. E, de jorro, as lembranças vieram nítidas à sua memória.

São Paulo, 1ª quinzena de novembro de 2000

    Desde os primeiros dias Stélio havia detectado algo muito sutil nos radares de última geração que manuseava. Feito o registro das fotos do satélite, pediu a opinião dos colegas que não concordaram com ele, achando-o preocupado à toa. Pudera! Quem só sabia trabalhar, tinha tudo para transformar-se em moderno Nostradamus.

    Não ficou agastado com isso. Com o passar dos dias, porém, as evidências tornaram-se cada vez mais fortes. Levou suas preocupações ao Prof. Rezende, Diretor do Centro Meteorológico, que examinou os registros e o encarou.

    - Sinto muito, meu caro, acho que é exagero seu...

    - Por favor, senhor, analise tudo, é muito importante... – pediu-lhe.

    O Diretor passou a tarde estudando as cartas e as análises feitas. Por fim, chamou-o particularmente:

    - Não vi nada de preocupante. Quer, por favor, esclarecer-me?

    - Veja, senhor, nestas cartas há uma ínfima mas gradual mostra da formação de uma grande massa de ar polar que, caso se encontre com o ar quente que cobre o sul/sudeste do país, poderá causar tempestade tropical muito violenta, com ventos de até 200km/h...

    - E daí, meu caro? – ironizou o Diretor.

    Stélio ignorou o aparte.

    - Senhor, essa tempestade tem noventa chances em cem de atingir o litoral brasileiro na passagem do ano...

    - Você está brincando...

    - Estou falando sério, senhor...

    - Meu caro, tal probabilidade não pode existir. Isso é impossível...

    - Tudo bem... peço-lhe, no entanto, que reavalie os dados...

    Reconhecendo a capacidade profissional de seu meteorologista, o Prof. Rezende houve por bem levar tal hipótese ao conhecimento do Serviço de Segurança Pública. Stélio foi convidado a prestar esclarecimentos e, bombardeado por milhões de perguntas, nem sempre pertinentes, teve de explicar minuciosamente sua tese, agora ampliada pelas fotos do Agente que o interrogara.

    - Não estou dizendo que vai acontecer – retrucou Stélio – mas que é provável.

    - Dá na mesma...

    - Não, senhor, é diferente...

    Não querendo responsabilizar-se, o Agente fez seu relatório ao chefe do Departamento, que se reuniu com o Prof. Rezende. Novamente, durante horas, Stélio foi sabatinado e explicou em minúcias a sua tese. Por fim, todos exaustos, o chefe do Departamento de Investigações perguntou-lhe:

    - Afinal, o que você pretende com esta hipótese?

    - Senhor... sugiro medidas emergenciais. Nós não sabemos como agir em tal circunstância. Teremos que ser rápidos na prevenção para que não haja uma catástrofe!

    - Você acha?

    - Sim, senhor...

    O General Guttemberg ficou pensativo. Pelas informações recebidas, o rapaz era um profissional exemplar, dono de uma inteligência avançadíssima. Falava em probabilidades, claro. Caso ficasse só nisso... ótimo. E se, por acaso, elas chegassem a se concretizar? Seria, como Stélio dissera, um desastre, uma hecatombe.

    Levou suas dúvidas ao Ministro da Segurança Pública que , conhecendo seu alto grau de discernimento, houve por bem não tomar decisão isolada. Solicitou audiência em caráter de urgência com o Presidente da República, o Alto Comando das Forças Armadas e o Presidente do Congresso Nacional.

Brasília, DF, 2ª quinzena de novembro de 2000

    Em reunião secreta, não agendada pelo cerimonial, o General Guttemberg discorreu sobre a seriedade e competência de Stélio, expondo-lhes sua tese. Surpresa geral. Pelo ineditismo e seriedade da pauta, foram unânimes em admitir a necessidade de sigilo absoluto sobre o assunto. Nada deveria vazar para a imprensa.

    Debateram exaustivamente a questão: caso decidissem pelo alto risco representado pela provável tempestade tropical, seria necessário alertar a população para o perigo de estar na orla, na passagem do ano. Mas... justo deste ano? Ironia do destino! Não era na praia, à beira mar, que a população pretendia esperar a virada do milênio? Feita com mais de dois anos de antecedência, a programação dos eventos nacionais abrangia comemorações variadíssimas, muitas das quais com início previsto para primeiro de dezembro. A grande engrenagem estava, em movimento e não viam como reverter a situação: milhões de pacotes turísticos vendidos, reservas esgotadas em todos os hotéis á beira-mar, locação de milhares de apartamentos na orla, aviões fretados, vôos lotados, ônibus extras, carros... De algum modo, todos os grupos empresariais haviam investido pesado. Que diriam eles de uma perspectiva dessa? Haveria um prejuízo enorme, incalculável, levando à bancarrota muitos daqueles que haviam apostado suas melhores fichas no mega-evento. Um silêncio nervoso tomou conta da sala: sabiam da delicadeza da situação mas não conseguiam atinar qual a melhor saída para ela.

    - Não admito!  - gritou, furioso, um dos participantes da reunião – não admito que um parvo, um único, tenha visto coisas que ninguém mais viu!

    Parou, tomou fôlego e, desculpando-se pela reação intempestiva, continuou.

    - Quantas pessoas estudam diariamente essas mesmas fotos? Milhares delas em toda a América do Sul e no mundo. E apenas esse fulano resolveu que tal tempestade vai atingir nossas praias em plena festa de fim de ano! É inacreditável que estejamos discutindo uma hipotética fúria das marés que apenas ele viu. Senhores, na minha opinião, esse rapaz é doido e não devemos dar ouvidos às suas lorotagens.

    A agitação foi grande.

    - Senhores, senhores, vamos manter a calma – pediu o secretário do Presidente.

    - General Guttemberg, o que achou do profissional do Centro Meteorológico? – perguntou o Presidente.

    - Bem, senhor Presidente, ele é ponderado, analítico, conclusivo, inteligente, sabe do que está falando.

    - Deu-lhe certeza do que vai acontecer?

    - Senhor, há a hipótese de que no dia trinta e um de dezembro, uma grande massa de ar polar vinda do extremo sul da Argentina possa se chocar com a massa de ar quente que possivelmente cobrirá toda a região sul/sudeste do país e sul do Oceano Atlântico, o que poderá ocasionar uma tempestade imprevisível. Que ela atinja as nossas praias, é mera probabilidade.

    - Em que dimensão?

    - Disse ele que noventa por cento!

    - Ora, ora... – sorriu o Presidente – não estamos superestimando tal probabilidade? Que acham os senhores?

    O peso da responsabilidade pairou no ar, junto com o largo sorriso do Presidente. Depois de exaustivamente debatido o assunto, ficou resolvido que um grupo de cientistas avaliaria a tese de Stélio, já na próxima semana. Era um assunto prioritário, que requeria urgência a muita cautela, pois, o prejuízo financeiro que viria caso tal hipótese fosse divulgada aleatoriamente, seria incalculável.

São Paulo, 13 de dezembro de 2000

    O Prof. Rezende chamou Stélio em sua sala. Disse-lhe que os melhores meteorologistas do país haviam estudado todos os dados do último mês e chegado à conclusão de que era impossível um fenômeno desse porte acontecer na orla brasileira. Disse  a Stélio que todas as possibilidades plausíveis haviam sido levantadas, reiterando-lhe que não haveria tempestade alguma na passagem do ano, pois mesmo quente, a massa de ar, provavelmente, se manteria seca.

    - Acalme-se, meu rapaz – disse-lhe – acho que você está trabalhando demais.

    Stélio manteve-se calado. Não podia fugir das evidências: se profissionais mais capacitados concluíram que havia exagero em suas previsões, tinha de concordar com eles. Assim que Stélio voltou ao trabalho, o Prof. Rezende ligou para Brasília.

    - Alô?! Aqui é o Prof. Rezende, Diretor de Centro Meteorológico de São Paulo. General Guttemberg, já conversei com o rapaz. Ele teve a sensatez de admitir ter extrapolado em seus cuidados. Sim, senhor, está tudo sob controle... Boa tarde.

    No final do expediente, Stélio ficou sabendo que estaria em férias a partir de catorze de dezembro. Foi para casa, arrumou a bagagem, colocou-a no carro e desceu a serra, rumo ao litoral. Estava sereno. Já que seus colegas haviam concluído que a tempestade não viria, ele assinava em baixo. Prova disso é que passaria suas férias justamente no litoral. Mas... e se ele, Stélio, estivesse com a razão? Bem, a essa altura dos acontecimentos, nada mais adiantaria. Caso falasse com alguém a respeito de seus temores, haveria um pânico tão grande que...

    “Cara, acorda... quem iria acreditar em você? Admita seu erro, esqueça tudo e aproveite o verão”. Sacudiu os ombros e começou a cantarolar enquanto o carro entrava na garagem do prédio.

    Sentiu um toque macio na nuca. Voltou-se. Nísia, que tinha nos olhos a cor do mar, sorriu-lhe:

    - Bom dia! Acordou cedo para ver o menino Jesus?

    Ele abraçou-a:

    - Prefiro olhar para você...

    Estavam quase se beijando quando Pedrão fez o maior estardalhaço abrindo a última garrafa de champanhe.

   - Senhores... um brinde especial. Hoje é Natal!

   Riram muito com a rima perfeita do luzidio Pedrão. Lá fora a praia esperava pela alegria deles...

Santos, 26 de dezembro de 2000

    Reuniram-se para programar o maravilhoso réveillon que teriam. Listas e mais listas foram feitas: presentes, vinho, champanhe, uma ceia especial, cerveja, água, frutas..., tudo providenciado com antecedência para evitarem atropelos de última hora. Fizeram sorteio para saber onde esperariam a chegada do novo milênio. Endereço para a ceia? O apartamento do Stélio, com sua visão paradisíaca de toda a orla santista.

São Paulo, 27 de dezembro de 2000

    Logo pela manhã, Ronaldo, que substituía Stélio na monitoração dos radares, chamou Zoiro com urgência.

    - Veja esta foto do satélite... há certa formação cumulativa bem no extremo sul da Argentina...

    - Lá vem você com essa conversa de novo. Isso é irrelevante, Ronaldo.

    - Mas Zoiro... não estou gostando...

    - Qual é, cara, está com síndrome de Stélio?

    - Fui o primeiro a rir dele, Zoiro, mas agora sinto que há alguma coisa estranha nestes aparelhos...

    - Isso é paranoia! Vem cá... onde você vai passar o réveillon?

    A conversa generalizou-se e Ronaldo distraiu-se. “Deve ser coisa da minha cabeça”, pensou.

Santos, 27 e 28 de dezembro de 2000

    Stélio e amigos providenciaram tudo, sem perder nada do que vinham desfrutando: a praia, o sol, o chopinho, o namoro, as serestas, as discussões sobre futebol, as brincadeiras, as idas e vindas pelo calçadão, os restaurantes mais badalados, os bares, as boates, os passeios por São Vicente, Guarujá...

São Paulo, 28 de dezembro de 2000

    À tarde, Ronaldo pesquisou as fotos que Stélio analisara e comparou-as com as do dia. Havia, sim, sinais evidentes da formação de uma enorme massa de ar polar, bem no extremo sul da Argentina. Ficou apreensivo. Para distrair-se folheou a revista Ciências Hoje, que acabara de chegar. Um artigo chamou-lhe a atenção: Colisões Subterrâneas, assinado pelo Prof. Dr. Watson Leary da Universidade de New Jersey. Nele, o eminente geólogo de renome internacional discorria sobre a possibilidade, ainda em 2000, de movimentação das rochas do fundo do Oceano Atlântico, a quinhentas milhas da costa brasileira, o que causaria um maremoto capaz de provocar violentas e gigantescas ondas que quebrariam de encontro à costa, numa destruição sem precedentes, pela falta de estrutura dos países subdesenvolvidos. O Prof. Watson fazia uma analogia entre a América do Sul e o Japão, um país já preparado pela educação e pela tecnologia para enfrentar tais fenômenos, e terminava o artigo dizendo ser a Terra um organismo vivo em constante transformação o que poderia provocar tragédias nem sempre anunciadas.

   Ronaldo ficou abismado com o que acabara de ler. Procurou o Diretor do Centro Meteorológico mas foi informado de que o Prof. Rezende só retornaria na segunda-feira, oito de janeiro de 2001, e não deixara telefone para contato. Com a revista na mão foi até a sala de Zoiro que nem quis ouvi-lo, ocupado com seus próprios afazeres e sua programação de fim de ano. Ligou para o apartamento de Stélio. Uma voz eletrônica desejou-lhe Feliz Milênio em quatro idiomas e informou-o de que o amigo só poderia atendê-lo em quinze de janeiro. Tentou, sem êxito, encontrar o número do celular de Stélio. Desesperado, exausto, foi para casa.

Santos, 29 de dezembro de 2000

    O dia amanheceu com sol forte e um calor brutal em todo o país. À medida que as horas passavam, o calor aumentava. Os noticiários de rádio e televisão mostravam os preparativos do grande evento em todo o mundo. De hora em hora, focalizavam as estradas brasileiras congestionadas, os milhares de carros descendo para o litoral, os aeroportos com um movimento nunca visto em sua história. Nas grandes cidades o trânsito caótico, carregado, complicado, dava uma visão bem própria da brasilidade, com os retardatários entupindo de vez os trechos de ligação das rodovias de acesso ao litoral.

    A meteorologia falava do calor escaldante dos próximos dias, com temperaturas elevadíssimas, nunca sentidas em todo o país. Os comerciantes, mesmo bem abastecidos, questionavam se aguentariam um calor tão intenso. Todas as cidades litorâneas haviam duplicado sua população, devido ao grande afluxo de turistas. As prefeituras tomavam providências urgentes para evitar o colapso dos serviços públicos. Shoppings, supermercados, hipermercados, abarrotados de gente, tentavam a todo custo atender a clientela em desesperada busca por provisões e presentes. Havia como que uma onda de euforia e histerismo no ar.

Santos, 30 de dezembro de 2000

    De manhã, Stélio e sua turma foram até a praia. Cinco minutos depois Nísia queixou-se do calor. Abrigaram-se num dos quiosques.

    - O sol está torrando... – disse Fábio.

    - Mesmo na sombra o mormaço é feroz... Até o vento está quente! – completou Toni.

    - Acho que o tempo vai mudar... – gritou Pedrão à sombra de um chapéu-de-sol.

    - Deve ser o tal noroeste que eles tanto falam...

    Stélio lembrou-se de tudo e, apesar do sufocante calor, ficou gelado. Disfarçou.

    - Bem... vou para o meu apartamento. Lá, pelo menos o ar está fresco. Até mais...

    Ao chegar, ligou para o serviço e falou com Ronaldo. Foi um alívio para ambos.

    - Cara... – disse Ronaldo – tentei falar com você a semana toda... estou preocupado.

    Deu detalhes sobre a formação da gigantesca frente fria provável causadora de tempestades nas próximas horas e leu para ele o artigo do Prof. Watson. Stélio não acreditava no que ouvia, embora a revista fosse a mais conceituada nos meios científicos.

    - Qual o comentário da revista sobre o artigo? – perguntou.

    - O professor, embora brilhante, é tido nos meios acadêmicos como uma pessoa excêntrica e pouco confiável por seus estudos nada ortodoxos, cercados de misticismo.

    - Meu Deus! Mais essa, agora! – gemeu Stélio. Se as duas hipóteses coincidirem teremos uma tragédia imensa. Fale com o Prof. Rezende, Ronaldo.

    - Não adianta, Stélio, já tentei localizá-lo, mas não consegui. Cara, pensa bem, não temos nada de concreto para pedir ajuda, apenas a palavra de um meteorologista estressado e de um cientista maluco...

    Conversaram muito e concluíram, impotentes, que nada mais lhes restava a fazer senão aguardar os acontecimentos. Stélio tinha lágrimas nos olhos quando desligou o celular. Do terraço olhou o mar muito azul, com ondas não tão calmas, recebendo no rosto o vento quente do noroeste bravio. Sob o sol escaldante as pessoas continuavam na areia não arredando pé da praia lotada.

    A barulhenta chegada dos amigos interrompeu seus pensamentos.

    - Hum... aqui está bem melhor... você tinha razão...

    Depois de uma boa chuveirada, reuniram-se na sala e só então notaram os sinais de preocupação no rosto de Stélio.

    - Aconteceu alguma coisa? – quis saber Nísia.

    - Não... por que a pergunta? – disfarçou ele – aceita uma cervejinha?

    Nesses dias de convivência, haviam aprendido a respeitá-lo e por isso mudaram de assunto.

    - Vamos assistir a um filme? – propôs Fábio.

    - De preferência sem legendas. Quero exercitar o meu inglês... – disse Pedrão, fazendo pose de importante.

    - Aí, negão... gostei... – sorriu Toni.

    - Ei, Pedro, você vai mesmo para os Estados Unidos em janeiro? Pra morar? Perguntou Nísia.

    - Yes, my friend...

    Foi a maior algazarra. Todos falavam ao mesmo tempo dando-lhe mil e uma dicas de como sobreviver em terras de Tio Sam. Stélio olhava-os, pensativo. Se soubessem do provável perigo a que estavam expostos! Até pensou em desabafar toda sua angústia, mas não o fez. Não tinha o direito de assustar os amigos. Queria, desesperadamente, que ele e o Prof. Watson estivessem errados.

    Durante tarde, o movimento nas praias foi muito grande, apesar do sol inclemente, do mormaço, do noroeste.

    À noite, Stélio e amigos assistiram pela televisão os preparativos mundiais para a virada do ano. Parecia que o planeta havia enlouquecido. Em todos os continentes procurava-se, freneticamente, o melhor lugar para se esperar a chegada do novo milênio. Governantes de todos os países pediam aos habitantes que mantivessem a calma e permanecessem em suas cidades, evitando as estradas e os aeroportos superlotados.

    No norte e nordeste do Brasil os trios elétricos arrastavam multidões, enquanto as estradas começavam a parar, congestionadas por milhares de veículos, inclusive caminhões enormes que tentavam abastecer as cidades com maior afluência de turistas. Notícias do litoral sul e sudeste, davam conta de serem eles os mais problemáticos. A cidade do Rio de Janeiro vira triplicar o número de seus habitantes e os primeiros sinais de colapso dos serviços públicos já se evidenciavam.

    Em todo o litoral paulista a situação fazia-se, também, assustadora. Na Baixada Santista, em meio a euforia descontrolada, poucos estavam preocupados com a causa desse sol tão forte, desse calor de assustar. Stélio, muito sério, acompanhava o noticiário sem ouvir os comentários jocosos da turma.

    Nessa noite não conseguiu dormir, rolando na cama, sentindo-se aflito. De madrugada, assustado, pôs-se a escutar. E não havia som algum. O que não o deixara dormir fora, justamente, a falta do marulhar das ondas, o silêncio do mar. Levantou-se e foi até a sacada. As luzes da praia mostraram-lhe o mar muito longe, sem ondas, quieto.

    - Muito estranho...

    Assustou-se com o som cavernoso da própria voz. Olhou para o céu e orou como há tempos não fazia.

Santos, 31 de dezembro de 2000

    Acordou tarde, com dor de cabeça. Pela janela aberta sentiu falta da eterna palpitação das ondas. Olhou o relógio: eram 11 horas e 30 minutos do dia 31 de dezembro de 2000. Angustiado, respirou fundo: a sorte estava lançada.

    Ouviu o barulho dos amigos mas sentia-se sem coragem de encará-los. Lera, em algum lugar, que a alma das pessoas boia em seu olhar e tinha medo que eles pudessem ler em seus olhos, o perigo invisível que talvez se ocultasse na previsão do tempo. Permaneceu de olhos fechados até ouvir a respiração de alguém que se aproximara mansamente. Abriu-os e lá estava Nísia, vestida de azul, com os cabelos úmidos descendo em cascata pelos ombros.

    - Oi, preguiçoso... – sorriu ela – quer nos dar o prazer de sua companhia?

    Não teve como resistir. Após uma chuveirada, reuniu-se à turma na cozinha, onde uma magnífica mesa para o desjejum fora preparada.

    - Alô companheiro... pode aproveitar porque só no próximo milênio você terá um café da manhã tão caprichado assim... – observou Pedrão, alegremente, o que fez romper uma chuva de risos.

    Bom dia... bom dia... – saudou-os Stélio – quero aproveitar para dizer-lhes que é muito bom tê-los como amigos. Nesta minha vida de eremita, jamais supus pudesse reunir num grupo pessoas tão especiais como vocês...

    Foi interrompido com palmas, gritos e assobios. Sorriu um tanto forçado pois sabia que, apesar de amizade e confiança que saíam de sua boca, tinha a incerteza e o medo no coração. Ficaram, ali na cozinha, rindo e conversando por um bom tempo.

    Pedrão resolveu ir até a praia encontrar-se com sua nova paixão. Toni ligou a televisão. Os noticiários davam conta da grande preocupação do mundo, face ao descontrole das pessoas que, sem avaliar a dimensão do transtorno em andamento, ainda tentavam sair de suas cidades.

    Com a maré perigosa e estranhamente baixa a enorme faixa de areia fazia com que os turistas afluíssem aos borbotões, ocupando totalmente o espaço deixado pelo mar. Não havia uma única vaga. Toda a extensão estava coberta por cadeiras de praia, coloridos guarda-sóis, toalhas, e banhistas despreocupados que, entre milhares de latas de cerveja, faziam planos de ficarem ali até o dia seguinte. Não havia preocupação quanto ao sol forte e ao calor excessivo.

    Do terraço Stélio observava a multidão. Era assustador! Pensou em ligar para Ronaldo, mas desistiu.

    Fábio e Toni resolveram descer. Stélio foi bruscamente contra, levando-os a estranharem sua atitude.

    - Está muito quente... para que corrermos o risco de insolação se aqui estamos bem? Assim que refrescar, desceremos...

    Inquieto, preocupado, volta e meia perguntava por Pedrão, que não retornara. Ao notar olhares interrogadores sobre si, desculpou-se dizendo que o calor o deixava péssimo. Na verdade, sentia-se envolto em fúnebres presságios, não conseguindo livrar-se da convicção de que algo terrível estava para acontecer. Mesmo achando que estava errado tinha medo de que seus temores se confirmassem. Em sua mente estavam impressas as marcas das possibilidades em novembro e o artigo do Prof. Watson. Sentia-se exausto pelo seu conflito interior.

    Lá pelas dezesseis horas o mar parecia espelhado, faiscando ao sol. A forte maresia tomava conta da cidade, deixando o ar praticamente irrespirável.

    Pouco antes das dezessete horas o calor atingiu seu ponto crítico, tornando-se insuportável, abafadiço, opressivo. Apesar disso, os banhistas continuavam a ocupar toda a praia, sem noção do que poderia estar acontecendo para que o mar se afastasse tanto assim. Não havia questionamento de que qualquer espécie entre os milhares de homens, mulheres e crianças que lagarteavam na areia. Os minutos escorriam lentos pelas bordas do tempo. O assunto era a passagem de milênio que se aproximava. Ninguém arredava pé do espaço conquistado; queriam mais é garanti-lo. A alegria e a descontração tomavam conta da praia.

    Gradualmente, nuvens esparsas começavam a se formar sobre o mar, mas ainda não havia vento. Num instante, à medida em que elas furiosamente se condensavam  e escureciam, numa rapidez incrível, começou um vento quente, mormacento, recrescendo em poucos minutos, até assobiar loucamente e transformar-se em vendaval. A tempestade tomou conta da cidade: no céu negro, relâmpagos e raios furiosos dividiam espaço com trovões assustadores.

    Muitos banhistas recolheram seus pertences e puseram-se em fuga. Da sacada do apartamento, Stélio e seus amigos gritaram aterrorizados.

    Viram, em desespero, o mar grosso, como de chumbo, encrespar-se alucinadamente, rugir e avançar sobre a areia em vagalhões enormes que atingiram os banhistas em questão de segundos. Não Houve tempo para nada. Um indescritível e arrepiante uivo de pânico ergueu-se da multidão que, há pouco, era só alegria.

    O mar avançava furioso, terra à dentro, carregando tudo o que encontrava. Mal um vagalhão recuava e já vinha outro feroz, rugindo, rugindo. Pessoas eram levantadas no ar como plumas e lançadas a metros e metros de distância. Outras, arrastadas pela natureza em fúria, corcoveavam sobre a imensidão das ondas e perdiam-se no abismo sem fim.

    Enormes vagalhões erguiam-se muito alto atravessando a avenida, desmoronando-se num pandemônio às soltas, atingindo os edifícios da orla, galopando pelas ruas próximas e, no refluxo, levavam consigo o que estava em seu caminho.

    As nuvens desabaram em chuva furiosa e o vento enlouquecido derrubava postes como se fossem de palha. Apagaram-se as luzes e o som que se ouvia era o rugido do mar, o sibilar do vento e gritos lancinantes de desespero.

    A cidade sofria, chorava, gemia, gritava. As pessoas que corriam alucinadas, de um lado para outro, os olhos fora das órbitas, sem saber o que acontecia, eram apanhadas pelas ondas e arremessadas à distância. Uma cena dantesca, presenciada por Stélio e seus amigos que tentavam fechar as janelas na esperança de proteção. O vento furioso e a chuva forte estilhaçavam vidros, arremessando-os contra as paredes, destruindo tudo.

    Na escuridão reinante, o mar selvagem bramia, chicoteando ondas altas, violentas, em turbilhões de água que abatiam sobre os jardins e os prédios da avenida. Uma toalha d’água varreu o terraço de Stélio. Nísia agarrou-se a ele chorando, apavorada.

    Quarenta minutos depois que começara, a tempestade cessou. O vento, rodopiante, acalmou-se. A chuva diminuiu de intensidade até se transformar num choro manso. As ondas, embora altas, permaneciam em seu lugar. O mar, ainda em fúria, arreganhava seus dentes para outras praias do imenso litoral, como Stélio previra.

    Aos poucos o céu foi-se abrindo e a escuridão deu lugar a um anoitecer típico de verão, com temperatura agradável, quase fria. Então, foi possível avaliar a devastação causada. Os jardins da praia haviam se transformado num mundo caótico de destroços irreconhecíveis, detritos trazidos pelo mar e corpos dilacerados de mortos e feridos.

    Também o porto fora atingido. O mar grosso, o vento alucinante, o infernal turbilhão das águas, os sucessivos vagalhões acavalados haviam caminhado pelo estuário, destruindo tudo à sua passagem, jogando navios contra o cais, derrubando guindastes, virando containers, afundando embarcações menores, elevando o número de mortos.

    Os canais transbordaram, não suportando a fúria das águas, inundando ruas e avenidas, alagando prédios e praças. A ilha toda fora atingida pela tempestade.

    Saindo do estupor da surpresa, em desespero, as pessoas acorreram às ruas e praias a fim de socorrer os feridos. Atordoadas, desciam dos prédios chorando e chamando por seus familiares. Os carros de socorro tinham dificuldade de locomoção nas ruas congestionadas. As sirenes gritavam passagem por entre o caos reinante. Bombeiros, policiais civis e militares, membros da Defesa Civil e voluntários, tentavam, bravamente, minorar um pouco a aflição das pessoas. No entanto, ao se depararem com os corpos mutilados, não conseguiam conter as lágrimas.

    Stélio teve uma crise nervosa. Chorando, incontrolavelmente, só fazia culpar-se pelo que acontecera. Os amigos tentavam consolá-lo, mesmo sem entendê-lo. Nísia abraçou-se a ele, sentindo suas mãos convulsas apertarem-na qual torniquetes.

    Toni ficou com eles e Fábio tentou ir até a praia saber notícias de Pedrão, mas, com os elevadores parados, não se atreveu a descer as escadas. Voltando, providenciou velas para os castiçais, antes que a noite caísse de todo.

    Stélio, mais calmo, sacudindo espasmodicamente por soluços, contou-lhes seu terrível drama. Quando terminou, abraçaram-se a ele e choram juntos. Ficaram assim unidos durante um bom tempo, ouvindo o choro e os gritos misturados ao apelo das sirenes, que iam e vinham, socorrendo os feridos e resgatando os mortos. Inconformados, fizeram mil perguntas a Stélio que as respondia de pronto, com o coração apertado pela angústia.

    Fábio procurou o rádio em busca de notícias. O maremoto e a fúria da tempestade devastara o litoral sul-sudeste, decrescendo à medida que chegara ao nordeste; o interior fora varrido pelo vendaval e a chuva forte.

    Toda a orla recebeu o Ano Um do Novo Milênio chorando, socorrendo feridos e contando seus mortos e desaparecidos, entre eles o alegre e inesquecível Pedrão que não mais viajaria para a América do Norte. Para os brasileiros próximos do mar o réveillon tão esperado fora marcado pela tragédia não anunciada, que abriu feridas nas pessoas, marcando-as com cicatrizes dolorosas para o resto de suas vidas.

Brasília, DF, 31 de dezembro de 2000

    Assim que a tragédia começou, o Alto Comando das Forças Armadas, adicionou seu Corpo Médico e os soldados do Exército para ajudarem os Bombeiros, a Defesa Civil e os voluntários locais no trabalho insano de resgatar mortos e feridos em todo o litoral atingido pela fúria do mar.

Brasília, DF, 1 de janeiro de 2001

    Nas primeiras horas da madrugada, toda a orla brasileira atingida pela fúria das marés estava sendo socorrida oficialmente. Pela manhã, o General Guttemberg, inconformado com o que havia acontecido, colocou seu cargo à disposição, em caráter irrevogável, juntamente com seu pedido para a reserva. Foi, imediatamente, para o Rio de Janeiro como voluntário no socorro às vítimas. Talvez, assim, pudesse tirar de seus ombros a culpa imensa que o atormentava. Deveria ter lutado para que acreditasse em Stélio. E não o fizera.

    Desde a madrugada, emissoras de rádio e televisão levavam ao ar, para todo o país, a grande tragédia vivida pelos habitantes do litoral e veranistas.

    Às dezoito horas, em nota oficial lida pelo porta-voz do Palácio da Alvorada, o Excelentíssimo Senhor Presidente da República lamentava a ocorrência “inesperada” de tão brutal tempestade que, fugindo aos padrões meteorológicos, ceifara vidas preciosas e devastara a faixa litorânea do país. Apelava para que todos os brasileiros ajudassem no socorro aos seus irmãos, vítimas da fúria das marés. Falava também da liberação de verbas para minimizar a catástrofe.

Santos, 10 de janeiro de 2001

    Abatido e cabisbaixo, Stélio voltou a São Paulo, acompanhado por Nísia, de belos olhos cor do mar, tendo a certeza de que nunca mais seria o mesmo.

    Fábio e Toni retornaram a Sorocaba com os pais de Pedro, após o sepultamento do amigo, que o mar trouxera de volta.

    Deixaram para trás uma cidade arrasada, triste, que por muito tempo ainda choraria seus milhares de mortos e esperaria na praia que o mar lhe devolvesse seus desaparecidos.