Medo – Neiva Pavesi

   Estava sozinho em casa. A esposa fora ao supermercado comprar umas bobagens... Dissera-lhe da perda de tempo em dar uma caminhada tão longa a troco de nada. Ela não o ouvira. Como era teimosa essa mulher! Havia sido assim a vida inteira. Que fardo carregava ele em todos esses anos de casado!

   Sabia que os filhos defendiam a mãe, não admitindo que se falasse nada contra ela. Tudo bem! Os filhos sempre defendem as mães. Só queria que estivessem em sua pele durante um ano apenas, para sentirem como era difícil seu relacionamento conjugal. Bem... bem... agora o jeito era agüentar até que... (“como é mesmo que o padre dissera?!”).

   Caminhava pela casa, meio cego, meio trôpego, apoiando-se na bengala. Sentia-se desconfortável, aflito até, quando a esposa se ausentava.

   Ao passar pela sala, ouviu vozes. Confusas. Parou e apurou os ouvidos. Nada entendeu. Foi até o televisor: desligado. Procurou o rádio, na sala e no quarto, meio afobado. Lembrou-se, enfim, que estavam sem ele.

   Continuou sua ronda na casa silenciosa, indo e vindo, na tarde abafada e quieta, tentando apressar o tempo, enquanto esperava a companheira. Passou pela sala outra vez e ouviu, de novo, as vozes. Hum!... Então não fora imaginação sua! Havia, realmente, estranhas e confusas vozes, no silêncio de sua casa.

   Tal constatação, porém, piorou a situação: o medo instalou-se em seu peito, quase sufocando-o, e foi o agente disparador de mil conjeturas. Seriam fantasmas de seu passado a espreitarem-no pelos cantos? Estariam tentando conversar com ele? Quem sabe algum desafeto de sua juventude em busca de uma revanche?

   Sentiu-se indefeso, ali, sozinho. Por que a mulher teimara em sair, deixando-o desamparado? Estava a ponto de chorar quando ouviu o portão da rua se abrir. Graças a Deus!

   Tropeçando nas pernas e na bengala, foi ao encontro dela. A senhora estranhou ao vê-lo “correr” tão ansioso ao seu encontro. Bastou olhá-lo para saber que estava com medo.

   -Que foi, homem de Deus?

   -Marta, eu ouvi vozes... – disse ele bem baixinho.

   -Você sonhou, meu velho... – retrucou ela.

   -Não sonhei, juro... eu ouvi vozes... – insistiu.

   Ela ficou preocupada. Será que ele esclerosara? Deus do céu! Só lhe faltava essa.

   Entraram juntos na casa; ele olhou, relutante, à sua volta enquanto ela guardava as compras. Foi, então, que as vozes fizeram-se ouvir, novamente. Ela foi até o televisor: desligado. Continuou a ouvi-las por mais um milésimo de segundo. Depois... silêncio.

   Não era mulher de assustar-se facilmente, no entanto, algo estranho acontecia ali, pois também ouvira as vozes. Será que ambos estavam esclerosando? Santo Deus!

   -Você ouviu? – perguntou ele, a medo.

   -Ouvi, sim, mas deve ter uma explicação lógica para isso...

   Como ele estivesse agitado, fez com que se deitasse para relaxar um pouco. Obedeceu, docilmente, murmurando que havia vozes confusas em sua casa, mas, assim que descansasse um bocadinho, ele as expulsaria dali. Não era homem para deixar-se intimidar, facilmente, por fantasmas...

   Dona Marta sentou-se no sofá para descansar e meditar no que estava acontecendo. Distraiu-se, imersa em seus pensamentos. Foi quando ouviu as vozes. Elas vinham dali mesmo, bem perto de onde estava. Alongou o corpo, passou a mão pelo sofá e, finalmente, resolveu o mistério segurando no ar o relógio de pulso que o neto ali esquecera. Vindo do Paraguai, o ex-objeto de desejo do menino cumpria, inexoravelmente, sua sina. Uma voz feminina tentava, num macarrônico castelhano com sotaque chinês, dar o seu recado:

   -Ahora son las siete de la tarde... Ahora son las siete de la tarde...

   O assunto fez a alegria da família durante várias semanas.

   A partir de então, sempre que a esposa se ausenta, ele fica a esperá-la na varanda da frente, na cadeira de balanço, murmurando canções antigas como a querer enganar o fantasma do medo de ficar só.