Prefácio escrito para tradução em inglês

Aos meus amigos americanos:

Esta reflexão foi escrita para um público brasileiro, pensando na realidade urbana brasileira. Após o fato, ao descrever a essência dela para alguns amigos americanos, eles me pediram ansiosamente para lê-lo na íntegra. Foi só aí que me dei conta de que muitas dessas reflexões são igualmente pertinentes para a América. Vale destacar as semelhanças e as diferenças.

A reflexão sobre uma feia realidade urbana criada pela indiferença humana certamente bate muito perto de casa no contexto de cidades como São Francisco e Los Angeles. Mas quando olho para a América, não vejo uma sociedade que tenha perdido a capacidade de sonhar. Vejo exasperação e, frequentemente, uma realização crescente de que sonhar não é suficiente, e que é preciso agir para evitar que a realidade se afaste desse sonho. No entanto, nessa exasperação, muitas vezes vejo a reação oposta: uma sensação de desencanto e resignação, de que não há nada que se possa fazer e que, se jovem, é melhor planejar um futuro fora da América. Vejo inclusive pessoas bem estabelecidas pensando em um “Plano B”, tipicamente na Europa.

A sociedade brasileira é inteiramente permeada por esta última: exasperação e resignação. Estou tentando transformar isso na primeira: exasperação que leva a ação.

A maior semelhança, no entanto, é essa indiferença que permeia a vida urbana. Os brasileiros sempre tiveram que aprender a desenvolver essa indiferença desde jovens, pois no processo de desurbanização do século passado, cada cidade se tornou um fractal de miséria fisicamente justaposta à riqueza. Ninguém no Brasil pode ignorar a miséria, é literalmente impossível viver em uma cidade e não vê-la não importa onde você mora, e assim se aprende a se dessensibilizar, a ver e não perceber, a tomá-la como parte da paisagem imutável. Na América o processo de urbanização foi muito mais deliberado (embora eu não o considere um exemplo a ser seguido), a miséria nos EUA está discretamente escondida, segregada por regiões e não ressaltada, de tal forma que é perfeitamente possível viver a vida sem vê-la - a ponto de as pessoas frequentemente ficam chocados, americanos e estrangeiros, quando se destaca que a América tem bolsões de pobreza e miséria que são paralelos à América Latina.

O curso das condições que causaram o estado atual é objeto de debate, mas o prognóstico é fundamentalmente claro: as pessoas não se importam com as pessoas.

A pandemia exacerbou isso a tal ponto que muitas pessoas parecem realmente ter perdido a capacidade de socializar. O problema é tal que a América reconhece que existe um problema (coisa rara), mesmo que não saiba como proceder. O remédio, ao que me parece, é a socialização saudável. Em meio a uma ansiedade verdadeiramente generalizada, sinto que os cegos guiam os cegos - embora já estejam no buraco, tentando escalar para fora.

Começar a socialização saudável em geral é um problema em aberto, mas acho que a solução sempre se resume aos indivíduos. A reflexão abaixo se constrói nesse sentido. Palavras sozinhas, sem as ações e os indivíduos para incorporá-las e liderar pelo exemplo são muito menos poderosas. Mas espero que isso possa inspirar reflexão genuína, e talvez ação, para criar uma sociedade na qual você deseja viver com compaixão.


Criando a sociedade que queremos
A empatia, o desapego, o sonho, e a compaixão na construção da solidariedade e de uma visão compartilhada de futuro e sociedade

Como é a sociedade em que gostariamos de viver? Como são as pessoas? Estamos contentes com o conjunto de atitudes esposadas no Brasil hoje, ou será que mudaríamos algo - a começar por nós mesmos?

Crescer e viver nas cidades brasileiras é hoje um exercício diário em indiferença. É quase que impossível transitar por elas sem ter que ignorar agressões ao que consideraríamos belo, justo, bom, moral. Urbanização desordenada, lixo e poluição, espaços públicos ao léu, miséria e indignidade humana, insegurança e violência. O mero desempenho das funções do dia-a-dia requer uma profunda desinsetização.

Praticamos diariamente um tipo compartimentalizado de indiferença. Aprendemos a ignorar aos outros, a tudo aquilo que é público e comum, tão incorrigível nos parece essa desoladora realidade. Nos apegamos aquela pequena parcela da realidade sobre a qual sentimos controle: nossos bens, nossa casa, um condomínio privado onde literalmente botamos muros para nos separar das constantes agressões estéticas.

Acreditamos que a realidade comum é imutável e não procuramos agir sobre ela. Mais do que isso, buscamos ignorá-la ativamente. Nos apegamos ao que é nosso, e nos sentimos ainda menos compelidos a agir. Mudar a realidade demanda tempo, esforço e recursos. Se acreditamos que a realidade é incorrigível nunca vamos buscar investir esses recursos - certamente não dos nossos.

Esta profunda indiferença não é base sustentável para a construção de uma sociedade funcional e inclusiva. Mais do que isso. A indiferença nos mantém imóveis. A indiferença cria o oposto de uma sociedade dinâmica. Uma sociedade indolente que é incapaz de se reinventar, cuja evolução fica à mercê dos mais rasos elementos da natureza humana. Uma sociedade que não pensa, não planeja e não sonha. Uma sociedade que apenas reage impulsivamente na tentativa de preservar a realidade do presente, que é tudo que conhece e concebe.

A incapacidade de sonhar alimenta um profundo apego. Se somos incapazes de imaginar outra realidade, temos medo - literalmente medo e receio - de tudo aquilo que seja diferente e tenha o potencial para mover nossa realidade pessoal em qualquer direção que já não faça parte do nosso passado e consideremos desejável. Uma sociedade incapaz de sonhar é uma sociedade apegada ao passado, incapaz de se preparar para o futuro, e incapaz de criar uma visão de como esse futuro deve ser.

A capacidade de olhar para o presente, entender a realidade e criar uma visão de futuro é fundamental para qualquer sociedade hoje. Não é possível simplesmente extrapolar o passado que conhecemos. Novas tecnologias e nossa capacidade sem precedentes de comunicação continuam a gerar dinâmicas e artefatos sociais quase que sem paralelo com o passado que nos é familiar. Uma sociedade sem visão num ambiente tecnológico em constante mudança está à deriva e será arrastada pela corrente dos elementos mais egoístas da natureza humana. Resultará numa realidade distópica onde a indiferença individual gera a miséria coletiva.


O que nos leva a agir?

A indiferença nos deixa inertes, enquanto o medo e o apego nos paralisam e nos impedem de agir. O que nos leva a querer agir, e a partir daí, o que nos permite agir? O que nos leva a superar a indiferença? É a capacidade de sentir o mundo e de ser movido por ele. É o sentimento. Todos sentimos, mas podemos deliberadamente ignorar e abafar o que sentimos - ou podemos cultivar a capacidade de sentir a fundo e entender o que sentimos.

Quando sentimos o outro, isto é empatia. Quando temos empatia pelos outros e nos comovemos com sua situação, sentimos seu sofrimento e sua alegria, isto é empatia. Mas a empatia por si só é emotiva, reativa, lhe falta direção. A empatia por si só não nos diz como agir. Por exemplo, para ser um bom mentiroso e manipulador é necessário ter empatia. A empatia por si só não nos permite agir. Podemos continuar reféns do medo e do apego. Podemos sentir grande angústia ao ver uma situação que gostaríamos que fosse outra e ainda sim não nos permitimos agir por receio de fazer algo diferente ou apego e medo de partir com o que temos.

Mas a empatia pode ser cultivada de maneira deliberada, e ela pode ser direcionada. Isto é a compaixão. A compaixão é intencional. A compaixão nasce da empatia, da capacidade de estar com o outro em seus sentimentos e sua realidade, sem se deixar carregar por eles. Podemos cultivar a compaixão, se decidirmos que queremos. Se decidirmos que queremos estar com os outros em suas realidades, sem sermos consumidos pela emoção, mantendo nossa capacidade de agir de maneira intencional e deliberada. Isto é a compaixão.

A empatia nos permite superar a indiferença, mas o que nos permite transformar empatia em compaixão? O que nos dá direção e ímpeto para superar o medo e o apego de forma deliberada? O que faz com que possamos dar a nós mesmos permissão para agir de forma diferente, numa direção que é nova e desconhecida?

É o sonho. É a capacidade de olhar para a realidade atual e conceber uma outra realidade, que consideramos possível, desejável, e que queremos de fato tornar real. Esta é a característica pivotal do sonho que nos leva a agir: devemos querer de fato torná-lo realidade. O sonho que motiva a ação é uma visão. Uma visão nos permite vislumbrar um caminho  a trilhar para criar a realidade que queremos.

Como cultivar o sonho que motiva a ação?

É muito difícil criar uma visão a partir de um sonho quando nos falta perspectiva. Quando não temos uma referência de como as coisas podem ser diferentes. Precisamos de perspectiva, pois ela alimenta a capacidade de imaginar. Não só para imaginar outras realidades, mas para conceber um caminho que nos pareça trilhável. A perspectiva nos permite transformar o sonho em visão.

É possível criar perspectiva ao viajar, ao testemunhar diferentes sociedades e culturas, ao ler e pensar a fundo sobre diferentes realidades. Mas frequentemente esta é uma perspectiva de realidades distantes. Como podemos criar uma perspectiva diferente sobre a nossa própria realidade? Imaginação, conhecimento e vivências ajudam muito, mas a força mais poderosa são os exemplos inspiradores. Exemplos de organizações, processos e atitudes que alteram a realidade na direção que queremos.

E a unidade fundamental são as pessoas. São pessoas que nos inspiram de maneira tangível, e que nos dão um exemplo claro de como individualmente podemos agir para criar a realidade que queremos. E quanto mais próximos de nós e da nossa realidade forem esses exemplos, mais forte é a capacidade de nos inspirar e levar a ação, pois conseguimos ver um pouco de nós mesmos nas pessoas que tomamos como exemplo.

É difícil conceber a nós mesmos em outra sociedade, cultura ou organização. Mas quando temos uma pessoa em nosso convívio, alguém com quem simpatizamos, fica muito mais fácil imaginar como nós mesmos podemos agir de maneira diferente. É por isso que as atitudes individuais são a maneira mais poderosa de galvanizar pessoas e sair da indiferença individual.

Um convite

O poder do exemplo reside principalmente não na grandiosidade, mas sim na proximidade de nós. Se conhecemos alguém que com pequenos gestos e atitudes melhora a nossa realidade imediata, isso pode nos motivar muito mais a agir da mesma forma do que ouvir falar de um estranho que melhorou a realidade de muita gente. Os pequenos exemplos nos parecem mais acessíveis, enquanto que os grandes podem parecer distantes e difíceis de emular.

Existe aquele ditado, “gentileza gera gentileza”. É verdade. Exemplo gera exemplo. Mas para mover os outros, o exemplo precisa ser visto, compartilhado, sentido. É fácil ignorar mesmo as ações que queremos ver quando estamos desensitizados. Por isso é importante comunicar aos outros não só o que fazemos, mas porque o fazemos. O sonho que se sonha só é só um sonho, mas o sonho que se sonha junto vira realidade. O sonho coletivo é uma visão, que motiva e leva a agir. A construção de uma visão começa a partir dos pequenos exemplos, das pequenas vitórias, que nos dão motivação e algo concreto para compartilhar até com quem é indiferente. E a partir daí cresce, a partir do momento que mais gente passa a compartilhar desta visão e agir nesta direção.

A construção da sociedade que queremos começa por nós mesmos. Este é um convite para você. Um convite para ser um exemplo. Um convite para sair da indiferença e tirar os outros da indiferença. Um convite para sonhar a fundo e compartilhar o sonho. Um convite para construir a sociedade que você quer, através das suas atitudes.