Jornalismo público
Danilo Rothberg
O jornalismo público não se limita a identificar os fatores que impedem os meios de comunicação de massa a cumprir sua função social.
Trata-se de uma alternativa para conectar o jornalismo ao interesse público de fato, bem como para preservar o direito à informação, conforme indicado na Constituição Federal.
Este texto discute as conceituações de “jornalismo público”, a partir da experiência do gênero, a rede britânica de TV, a BBC.
O livre mercado do jornalismo é incapaz de assegurar aos cidadãos o direito à informação, pressuposto pelo Estado democrático.
Há, pelo menos, quatro obstáculos para a livre circulação de ideias nos meios de comunicação de massa:
Diante disso, torna-se urgente a análise rigorosa para se verificar que ferramentas são necessárias para reverter este cenário, tanto do ponto de vista regulatório, como prático.
A contextualização do jornalismo público faz parte de um estudo de caso sobre uma cobertura feita pela BBC, a respeito de temas políticos e econômicos.
Além de ser adequada como referência ao desempenho da BBC no campo das notícias, a expressão “jornalismo público” também foi usada por outras ações em busca de qualidade editorial.
Uma resposta específica para os desafios enfrentados pelo jornalismo na atualidade foi posta pelo movimento surgido no começo da década de 1990 nos Estados Unidos e chamado ali de jornalismo público ou cívico.
Seus precursores partiram de um diagnóstico dos dilemas então enfrentados pelos jornalistas de veículos impressos e produziram um conjunto de propostas para enfrentar, abrangendo também TV, rádio e internet.
Mais de seiscentos veículos americanos passaram a adotar as orientações formuladas, constituindo um repertório de experiências que pode trazer lições a outros países preocupados com a qualidade de suas mídias jornalísticas.
A pluralidade e o equilíbrio não estão necessariamente relacionados aos instrumentos propostos pelo jornalismo público ou cívico.
Os serviços públicos de radiodifusão, como o britânico, também não têm relação com o movimento, apesar de as metas de ambos às vezes se parecerem em alguma medida.
Por isso, o objetivo não é equiparar as saídas propostas pelo jornalismo cívico à missão da radiodifusão pública.
Origens, conceitos e práticas
Autores que descrevem a trajetória do jornalismo público ou cívico destacam as eleições presidenciais de 1988 nos Estados Unidos.
O pleito teria sido uma espécie de exacerbação da cobertura em formato de enquadramento do jogo nos jornais impressos.
As notícias da campanha focaram principalmente na estratégia, ao invés do conteúdo.
A cobertura não teria abrangido quais propostas ou temas estavam em discussão, mas tão somente as chances deste ou daquele candidato vencer as eleições.
A partir daí, intensificaram-se as preocupações de muitos jornalistas de que aquele viés afastava o público da participação cívica.
Desse modo, o marketing político suplantou o debate cívica.
Isso teria provocado um quadro sem reflexo para as soluções necessárias aos problemas da comunidade e uma desconexão geral em relação à política.
Afinal, a agenda das preocupações do público parecia ter simplesmente desaparecido do noticiário. O significado do debate cívico acabou subtraído por um noticiário movido por desconfiança permanente em relação aos temas eleitorais.
Daí a teoria e a prática do jornalismo público apontarem a urgência da mídia voltarem a se conectar com o público, pela oferta de uma cobertura diferente, substancial e positiva.
O jornalismo público procura enfrentar sérias rupturas na esfera cívica e o decorrente declínio no engajamento dos cidadãos nos processos democráticos.
De acordo com seus principais defensores, os jornalistas têm a responsabilidade de alimentar o compromisso cívico e a participação dos cidadãos.
O jornalismo deveria promover, e até mesmo ajudar a ampliar, a qualidade da vida pública.
O jornalismo público “espera que a imprensa participe e não se separe dos esforços para aperfeiçoar a qualidade do discurso público”, sintetizam os pesquisadores Theodore Glasser e Stephanie Craft.
Mas ainda não há uma teoria acabada sobre jornalismo público.
Os seus fundamentos estão relacionados à afirmação do papel de formação política a ser desempenhado pelos veículos de massa, propondo um diferente “relacionamento entre a prática do jornalismo e a atividade democrática dos cidadãos em uma república autogovernada”, dizem os autores.
Seria possível um jornalismo público nos meios de comunicação de massa ou estaria confinado às mídias de Estado?
Na verdade, os seus defensores nunca esconderam que suas estratégias também possuíam uma finalidade comercial.
Afinal, recusar o distanciamento em relação à política não implica advogar soluções específicas para determinados problemas ou endossar qualquer tipo de “defesa partidária”, ressalvam os autores.
Jay Rosen, um dos principais teóricos do jornalismo público, diz que o jornalismo público é uma abordagem do negócio diário da profissão que apela aos jornalistas para que eles:
De maneira geral, são três os princípios que defende que os jornalistas:
Deem suporte e assistência ao público na procura de soluções para os problemas da comunidade. Em síntese, tais ações foram pensadas para reverter a alegada crise pela qual passa o jornalismo tradicional:
Dessa forma, o jornalismo público preocupa-se em reformar a imprensa, para que seja mais responsável, aberta à prestação de contas e democrática.
Enquanto o jornalismo cívico dirige-se, ao contrário, à recuperação da vida cívica.
A orientação do jornalismo cívico olha para fora, em direção à comunidade, enquanto a perspectiva do jornalismo público olha para dentro, em direção à profissão.
Um quer reformar o público através do jornalismo, enquanto o outro reformaria o jornalismo tomando público.
Críticas e ressalvas
A ideia de obter sugestões de pauta em reuniões amistosas com leitores é uma das mais atacadas pelos críticos do jornalismo público.
O empresário de mídia Joseph Pulitzer acreditava que a imprensa existe para revelar as coisas, e sua missão era penetrar a máscara dos segredos pelos quais as forças e agentes antidemocráticos operam.
Os fatos e as conexões que verdadeiramente demonstrariam a realidade da política não estavam disponíveis às pessoas em geral.
Por isso, cabia aos jornalistas revelar, sendo descabido indagar o público a respeito de suas preferências em relação à agenda jornalística.
Na pior das hipóteses, os jornalistas poderiam, ingenuamente, não perceber a existência de interesses escusos, escondidos sob a face idealizada das discussões “democráticas” em um fórum comunitário.
Ou ainda, poderiam até detectar a influência de motivações ocultas, e mesmo assim aceitar promover, uma vez tendo recebido o devido apoio de anunciantes.
Outra crítica central é dirigida a projetos de jornalismo público que conduziram com pouca transparência e sem metodologia adequada para obter das pessoas sugestões de pautas.
Em alguns casos, ocorre manipulação deliberada dos resultados pelos jornalistas, que selecionaram, na lista de preferências genéricas detectadas com o público.
Há outros problemas ao se delegar ao público parte do poder de definição da agenda jornalística.
O jornalismo público avalia que a participação do público é bem-vinda porque incentiva o engajamento cívico.
No entanto, essa visão se apoiaria sobre uma grave despolitização dos mecanismos de seleção de agenda.
A crítica, então, dirige-se precisamente ao fato de que, quando o jornalista público acredita ingenuamente construir uma agenda pura, genuinamente relacionada aos interesses da comunidade, nada mais faz do que promover visões ligadas de alguma maneira a propósitos particulares.
Embora os interesses particulares também sejam legítimos.
Na verdade, qualquer agenda, por mais depurada que se pretenda, é política.
A teoria é uma, mas a prática é outra, pois o jornalismo que se diz público não tem noção de “comunidade”.
Ou seja, quando os jornalistas dizem empenhar-se na resolução dos problemas da “comunidade”, servem a interesses, inclusive de grupos organizados.
Ocorre o mesmo, por exemplo, com os movimentos feministas, de defesa de minorias étnicas e contra o preconceito racial.
Os valores por eles partilhados não têm, geralmente, relação com a localidade que habitam, e sim são dados pela solidariedade que surge quando enfrentam coletivamente.
Isso ocorre porque faltam aos profissionais os vínculos orgânicos com os grupos sociais.
Respostas às críticas e perspectivas
Os jornalistas não gostam de ver seus dogmas questionados.
Eles teriam dificuldade em explicar a origem de sua alegada credibilidade.
O jornalismo comercial está confuso a respeito de sua própria autoridade.
Pois há uma grande relutância em refletir profundamente sobre quais pautas são escolhidas, como as matérias são construídas, porque certas pistas são perseguidas enquanto outras são abandonadas, e porque algumas vezes se procura ouvir uma diversidade de fontes em detrimento de outras.
E a insistência dos jornalistas públicos em procurar novos meios para justificar tais escolhas incomodaria os profissionais que atuam na mídia comercial.
Outra resposta está ligada à afirmação do jornalismo na manutenção de uma democracia.
O jornalismo público responde: todos nós somos eleitos quando a democracia falha. Todos nós fomos eleitos para ser cidadãos.
Segundo Michael Schudson, os jornalistas, que professam uma vocação dedicada a fazer a democracia funcionar, certamente deveriam estar dispostos a reexaminar suas regras e hábitos de trabalho.
É da cultura americana conceder aos jornalistas a vigilância da democracia.
Isso exige dos jornalistas públicos a organização de debates a partir do fortalecimento de múltiplas esferas públicas.
Por isso, o jornalismo público teve o mérito de, nos Estados Unidos, trazer para o âmbito profissional, questões antes restritas ao universo acadêmico.
Jornalismo público
A fim de definir traços gerais do que vem a ser jornalismo público, à luz das experiências, é conveniente antes sumarizar o seu oposto.
Ou seja, o que pode ser chamado de jornalismo não público.
A união dos termos jornalismo e público não implica uma redundância, pois eles não possuem uma ligação automática e permanente, como alguns gostariam de supor.
Ao invés, precisam ser efetivamente conectados por iniciativas objetivas, com tal propósito assumido.
Neste contexto, não é uma matéria jornalística que revelaria o jornalismo público.
Ao contrário: muitas vezes uma reportagem pode privilegiar diversos interesses.
Naturalmente, a mera disponibilidade de uma matéria jornalística para o público em geral não faz do jornalismo, uma atividade pública.
Muitas vezes, as mídias de informação de massa só dispõem desse caráter de acessibilidade geral para reivindicar o status de públicas.
Na prática, no entanto, às vezes, são quase veículos setoriais: favorecem perspectivas alinhadas a grupos específicos, embora aspirem representar camadas mais amplas e assim se apresentem.
E as grandes coletividades não encontram, por sua vez, oportunidades de expressão e tendem a não contar, muitas vezes, com organizações capazes de conferir contorno e substância às suas ideias.
O discurso privado oferecido ao público passa por público de fato, enquanto não é mais que a simulação de uma esfera que se pretende passar pelo espelho das preocupações sociais em geral.
Quando vitimado pela tendência ao entretenimento, e os consequentes apelos de espetáculo e sensacionalismo, o jornalismo político e econômico, seja ele em TV, rádio, televisão ou internet, também não é público, e sim atende principalmente aos imperativos comerciais.
Isto não decorre, no entanto, que a procura de lucro seja necessariamente incompatível com o jornalismo de interesse público.
O movimento do jornalismo cívico nos Estados Unidos indica que há novos e criativos meios para conciliar empresários e jornalistas.
Quando não reconhece o valor do pluralismo de informações e interpretações como meta central para a atividade jornalística comprometida com o fortalecimento da democracia.
Neste caso, o jornalismo renuncia a propósitos mais elevados e aceita como inevitável a propagação sectária de visões particulares.
Também não se tem jornalismo público em apenas matérias que atendem a interesses subterrâneos, disfarçados de proposições com as quais todos deveriam concordar.
Quando as emissoras comerciais de televisão produzem, a despeito de explorar concessões públicas, um jornalismo marcado por superficialidade e fragmentação, também se distanciam do jornalismo como serviço público.
E talvez neste caso resida a maior dificuldade de os telespectadores em geral perceberem as insuficiências do que recebem.
O valor e o papel das concessões públicas de radiodifusão em um sistema democrático provavelmente nunca foi explicitado.
Eles não conhecem outras formas de utilização do espectro de transmissão de TV.
Possivelmente desconfiam de que algo não vai bem, especialmente quando detectam a presença de vieses no noticiário, mas não possuem referências de comparação.
Daí o quadro atual figurar como um obstáculo tão complexo, que é preciso conhecer bem, assim como as suas possibilidades de reforma.
De outra perspectiva, o jornalismo se torna público, no âmbito do sistema público de radiodifusão, não apenas das emissoras diretamente financiadas por recursos públicos, portanto, mas também daquelas que, como empresas comerciais, exploram concessões.
Mas quando adota a pluralidade e o equilíbrio como valores editoriais.
Estas são as qualidades de um jornalismo que pode contribuir para as pessoas perceberem a complexidade dos desafios envolvidos nos processos democráticos de definição e implementação de políticas públicas.
São qualidades que significam meios para se proporcionar a compreensão da legitimidade das demandas alheias.
O campo social tende a deixar de ser visto como um jogo de soma zero, para assumir o imperativo democrático da socialização do bem-estar.
Muitos ainda duvidam, com um ceticismo um tanto difícil de justificar, que seja possível identificar o que vem a ser interesse público.
Afinal, setores tão diversos entre si reivindicaram, em cada ocasião, com um argumento diferente.
Ademais, a realidade das coisas é tão complexa que tornaria difícil visualizar isso.
Assim, até mesmo uma definição mínima de interesse público é suficiente para sustentar a noção de jornalismo público, a partir da defesa da pluralidade e do equilíbrio.
O desenvolvimento da noção de cidadania no começo do século 20, com seus direitos civis, políticos e sociais, significou uma maneira de superar o impasse.
A partir de então, o Estado deveria interferir na sociedade capitalista para proporcionar igualdade de chances de vida, por meio da cobrança de impostos.
Para o indivíduo, naturalmente, não agrada pagar taxas “impostas”.
Mas ele paga porque é forçado.
Igualmente é forçado a admitir que a desigualdade ameaça, em última instância, o seu próprio bem-estar.
Assim, interesse público é o interesse no desenvolvimento de uma sociedade como um todo, na forma de distribuição generalizada de bem-estar.
A esta conceituação mínima, os interesses individuais não são necessariamente opostos.
Daí o papel do jornalismo, em uma democracia, de contribuir para dar aos cidadãos uma visão mais ampla dos caminhos e descaminhos pelos quais o Estado gerencia o conflito social moderno, a partir de um tratamento plural e equilibrado.
Fragmentação, superficialidade e sensacionalismo dificultam a consecução dessa função, assim como a valorização furtiva de determinadas perspectivas em detrimento de outras.
Cabe, finalmente, mencionar que as qualidades que fazem da BBC uma das experiências de radiodifusão mais prestigiadas em todo o mundo na defesa da cidadania são visíveis.
Essas qualidades estão em toda a sua programação e nas suas diversas mídias (incluindo rádio e internet), não apenas no jornalismo diário de televisão.
No entanto, indicar como o telejornalismo diário da BBC atua para o aprofundamento da democracia é um desafio bastante complexo.
Trata-se de um sistema construído para superar falhas dos mercados de telecomunicações.
A sua permanência é justificada mesmo após o advento das tecnologias digitais que ampliaram as faixas de transmissão de sinal de TV.
Ali, enquadramentos temáticos surgem como um meio de superar os problemas trazidos por coberturas na forma de enquadramentos de jogo ou episódicos.
Os veículos de comunicação se envolvem com as comunidades que atendem, tanto para dar suporte à procura de soluções coletivas quanto para compartilhar o poder de definição de agenda.
Eles adotam, assim, estratégias de superação do distanciamento entre as mídias jornalísticas e seus públicos, que seria tido, por muitos, como causa do declínio de tiragens e audiências.
O movimento sofreu muitas críticas, e elas apontaram problemas pertinentes que, se tratados convenientemente, podem colocá-lo como inspiração adequada para quaisquer veículos de comunicação à procura de meios para cumprir com mais eficiência suas funções nas democracias contemporâneas.
Enfim, é difícil negar que existem certos problemas afetando a qualidade do jornalismo produzido atualmente em países, como o Brasil, nos quais o mercado de comunicações deixa muitas vezes a desejar no atendimento do interesse público.
Mas não há por que se resignar diante desse quadro.
ROTHBERG, Danilo. Jornalismo público: informação, cidadania e televisão. Editora Unesp, 2011.