Casa das Negas
Diário da Casa
julho/2019
No último dia do mês o coordenador da casa das Negas Hesse Santana sofreu um atentado racista e transfobico enquanto participava da parada da diversidade em Fortaleza. A casa lançou em suas redes sociais a seguinte nota de esclarecimento:
NOTA SOBRE AGRESSÃO FÍSICA MOTIVADA POR RACISMO E LGBTFOBIA CONTRA HESSE SANTANA, COORDENADOR DA CASA DAS NEGAS NA BARRACA SÓ SOL DA PRAIA DE IRACEMA, DURANTE A REALIZAÇÃO DA PARADA DA DIVERSIDADE
No último domingo dia 30 de junho, nós da Casa das Negas estivemos presentes na Parada da Diversidade, realizada na Praia de Iracema. Estávamos aproveitando a festa com tranquilidade, vendo a passagem dos trios, até que sentimos necessidade de comer e saímos a procura de um lugar onde pudéssemos jantar. Vimos um cartaz anunciando pratos na barraca Só sol e nos dirigimos a entrada, onde um homem branco, alto de blusa azul que se identificou como gerente barrou a nossa entrada. O mesmo homem permitiu, na nossa frente a entrada de três moças brancas. Observamos que dentro da barraca, apesar de estar ocorrendo a parada da diversidade só haviam clientes brancos e heteronormativos. Questionamos então com ele por que motivo não poderíamos entrar. Ele começou a gritar que estava encerrado. Iniciamos uma discussão questionando a posição do mesmo que identificamos como uma atitude racista. Então Hesse Santana e Liana Cavalcante, no intuito de encerrar a discussão e temendo alguma reação mais grave por parte do gerente se retiraram da frente da barraca Só Sol, virando as costas. Foi quando amigos viram o mesmo homem lançar um objeto de vidro ( que imaginamos ter sido um copo) com intenção de atingir o casal. O objeto atingiu as costas de Hesse na altura do ombro, fazendo dois cortes profundos que sangrava bastante. Atingiram também o braço de Liana cavalcante próximo ao punho, fazendo lesões mais leves. A polícia foi acionada. A postura da polícia desde o início foi de nos tratar como marginais. O agressor fugiu do local. A dona da barraca se posicionou em favor do agressor. Fomos orientados a ir para a delegacia. A dona da barraca também foi pretar depoimento. Nos recusamos a ir no carro da policia, por que entendemos exatamente o lado que a policia geralmente está.
Chegando a delegacia novas agressões por parte da policia. Os policiais nos fecharam na entrada da delegacia buscando coletar informações do lado de fora da delegacia. Nos recusamos e entramos. Solicitamos junto a portaria que precisamos regitrar um B.O. O nome social de Hesse Santana não era respeitado. Fomos tratados ao gritos por parte dos que estavam na recepção e também por parte do escrivão. Fomos tratados o tempo inteiro como marginais. “É uma mulher e vai ser tratada como mulher” diziam como justificativa para não respeitar o nome social. Vimos outro rapaz trans que não conhecemos também chegar algemado e ser tratado da mesma maneira. Tentamos intervir e mais uma vez fomos tratados aos gritos. Ficamos por volta de uma hora com a delegacia vazia sem ter nenhum atendimento. Foi quando pedi a amigos que entrassem em contato com o pessoal da organização da parada, para pedir ajuda. Essa ajuda foi de vital importância, pois quando os policiais perceberam a movimentação de tentarmos fazer contato com advogados e pessoas do movimentos começaram a de fato nos atender. Quiseram levar Hesse para fazer o B.O. sozinho e se recusavam a permitir a entrada de outras pessoas com ele. Nos recusamos a permitir que Hesse, um homem trans negro, ficasse sozinho nessas circuntância, por razões obvias. O delegado veio falar conosco. A cada instante em que o mesmo falava com Hesse limpava as mão em um alcool em gel. Quando recebi o retorno positivo de que a advogada estava a caminho, o tratamento se modificou mais uma vez. Permitiram que Liana, companheira de Hesse, o acompanhasse no B.O, como era da vontade do mesmo. Foi registrado o B.O. O delegado tentou nos convencer que em não houve violação de direitos por parte da delegacia. Recebemos a orientação da advogada para nos dirigirmos diretamente ao IML. Fizemos exames de corpo e delito e seguimos para atendimento médico na UPA da Barra.
Na UPA nos deram uma certa prioridade durante a triagem com a pulseira amarela, no entanto os atendentes deixavam pessoas com casos mais leves passar na nossa frente. Questionamos mais uma vez. Conseguimos a sensibilização dos pacientes de casos mais leves para passar na frente. A essa altura já fazia mais de 5h do corte. A única médica presente nesse plantão explicou que tinha que fazer a sutura o quanto antes, por que esse procedimento tem que ser feito em até 6h depois do momento do corte. Hesse e sua companheira Liana, seguiram para a sala da medicação e depois para a da sutura. A médica passou pela sala três vezes perguntando se as enfermeiras tinham vindo. Como as enfermeiras se recusavam a fazer a sutura, a própria médica foi realizar o procedimento.
Agradecemos aos amigos, as pessoas negras e LGBTs que nos ajudaram no momento, aos movimentos sociais LGBTS e de Negritude pela ajuda nesse momento tão dificil.
Queremos chamar a atenção das autoridades para esse fato, que mostra o quanto o racismo e a LGBTfobia continua atentando contra a nossa existência todos os dias.
Queremos também dizer as pessoas negras e LGBTs que não estão seguras no espaço da Barraca Só sol e que alguma mobilização precisa ser feita quando agressões desse tipo acontecem.
Queremos também destacar o racismo e LGBTfobia, além do despreparo da policia em lidar com a população LGBT, em uma evento para pessoas LGBTs. Ficou muito claro para nós que a policia não estava lá para nos proteger.
O que ocorreu com Hesse Santana neste domingo não é um caso isolado, e sim um produto de todos os discursos de ódio que estavamos na parada para combater. Todas as medidas legais estão sendo tomadas.
Convidamos a todos a lutar para que esse caso não fique sem punição.
Vidas Negras importam.
Vidas trans importam.
Vidas LGBTs importam.
Este mês precisamos exercitar ainda mais o autocuidado e fortalecer nosso pequeno Quilombo.
Iniciamos ainda na força de resistir o Projeto “Saberes e Fazeres de arte e cultura Popular” apoiado pelo edital das artes da secretaria de cultura de Fortaleza. O projeto foi inserido na programação do Laboratório de cenas resistentes - Quilombo e contou com a execução de oficinas artísticas voltadas para o fortalecimento do Coco das Goiabeiras e para o nascimento do Bumba meu boi canarinho.aconteceram as oficinas "voz falada para cultura popular" , " palhaço na cultura popular", “canto popular” e “percussão”. Além disso a Casa recebeu a advogada Thayná Silveira para bater um papo com os temas: “Pessoas transgênero tem direitos” e “Famílias LGBT+ tem direitos”. Recebemos também a visita da querida Marcela Ellias, realizadora de audiovisual, que nos deu de presente um lindo doc, falando um pouco sobre a nossa Casa. E no finalzinho do mês realizamos nosso I Seminário de resistências:
Segue o relatório do Seminário
RELATÓRIO DE SEMINÁRIOS DE RESISTÊNCIAS
Mesa 1: Afro centralidades, aquilombamento e combate ao racismo
Participaram da Mesa Liana Cavalcante com um relato sobre sua pesquisa apresentada como dissertação de mestrado para curso interdisciplinar em humanidades, “Cultura como Caminho de resistência” e o relato de Demetrius Vieira sobre sua pesquisa de criação “ORIKI:TEMPO” e sobre o processo de criação do projeto Maracati Nação Bons Ventos.
Debatemos sobre brincadeiras e suas relações com as questões raciais, bem como o lugar das brincadeiras na construção de papéis sociais. Refletimos sobre as brincadeiras infantis e a difusão do preconceito racial, em como algumas brincadeiras trazem em sí referenciais e estruturas racistas tais como o “capitão do mato agarra nega”, “pai Francisco” dentre outras.
Colocou-se como a brincadeira como funciona como uma prática de ensino do papel social a ser desenvolvido pela comunidade, como uma ferramenta condicionante. Compartilhamos relatos de infância sobre as brincadeiras infantis que vivenciamos, sobre os lugares de opressor e oprimido que representamos nas mesmas brincadeiras. Percebemos discursos de violência presente nas brincadeiras, inclusive em cantigas que revelam estruturas de opressão e como a ludicidade própria dos jogos e brinquedos cantados, presentes na cultura popular brasileira, foi moldada à partir de sua gênese, no período do Brasil-Colônia, para atuar como mecanismo de condicionamento do indivíduo, à partir de uma ótica classicista e racista, e como mecânismo de sofisticação dessa estrutura de opressão e exclusão social, até os dias atuais. Como brincar nossa ancestralidade? Como trazer a tona brincadeiras que empoderem?
Como inventar brinquedos que reverberam os valores que acreditamos?
Dialogamos como a ideia de aristocracia não foi superada nas capitais cearenses sobre as quais refletimos, no caso, Fortaleza e Aracati. E nós voltamos ao entendimento da importância do trabalho com comunidades periféricas e rurais que comunicam resistência da cosmovisão afro-indígena, ao passo que carregam práticas que preservam essas memórias ancestrais.
Conversamos sobre o bumba meu boi do Grande Pirambu como um prática afro-indígena, cujo elemento do boi carrega profundo significado, sobretudo dentro de uma ótica afro-centrada. Conversamos sobre como o bumba meu está presente na cidade de Fortaleza, enquanto brinquedo de negros e sobre a construção do Boi Canarinho, que está se encaminhando para nascer no próximo ciclo natalino. Dialogamos sobre a relevância de não negar a ancestralidade afro dessas brincadeiras tradicionais, tendo em vista que as mesmas surgem dentro de uma espiritualidade que é afro-indígena, sendo a negação dessa espiritualidade mais uma forma de invisibilizar, embranquecer e subjugar essas populações, sendo a construção do Boi Canarinho pensada na afirmação da ancestralidade afro e no respeito à identidade de gênero de seus brincantes.
Mesa 2:Reflexões sobre gênero, homoafetividades, opressão e empoderamento
Foram feitos os relatos de Hesse Santana, sobre sua experiência de auto-afirmação enquanto homem trans dentro de uma comunidade tradicional e o relato da pesquisa de Marcelo Freitas, concebida dentro grupo de estudos “Língua de Eros” do curso de letras da UFC, intitulada: “ A sacralidade do corpo e a vontade de Vida em Walt Whitman”. Conversamos sobre a concepção de masculinidade e heteronormatividade imposta em vários contextos sociais, sobre a importância de pessoas negras e trans relatarem com suas própria voz suas vivências e pesquisas sobre a realidade em que vivem. Discutimos sobre os lugares de fala de cada um e reafirmamos a necessidade de construir espaços afrocentrados, pautados sobretudo no respeito à dignidade da mulher, buscando a percepção de outras masculinidades possíveis, que não estejam influenciadas por sistemas de opressão impostos na sociedade.
Foram definidas para deliberações a criação dos seguintes GTs
1 - mulheres negras:
2 - transgeneridades e travestilidades:
3 - combate ao racismo e intolerância religiosa:
4 - famílias, comunidade e círculos sociais de pessoas LGBTs:
Questões levantadas pelo GT 1 e 4
Questões levantadas pelo GT 2.
Questões levantadas pelo GT 3.