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PARA APRENDER COMO AUTOR

Pedro Demo (2017)

Fui instado por Daniel Kinito – meu amigo angolano – a construir um texto sobre como ter sucesso na universidade. Certamente, não ofereço “receita pronta”, porque todas são enganosas, como é o caso da tão popular “autoajuda” (Demo, 2005). Para começar esta escaramuça, refiro-me precisamente à “autoajuda”. O termo, em si, é correto – a ajuda que importa, ao final, é aquela tão bem feita que o ajudado a possa dispensar, para andar com pernas próprias. Ou seja, ajudar para que não se necessite mais de ajuda. Não precisamos exagerar na dose, porque todos precisamos de ajuda – é condição humana, como diria Boff, em seu “Saber cuidar” (1999). Mas a literatura da autoajuda, em geral a mais prolífera nas livrarias, exagera no avesso – transforma o sentido pretensamente emancipatório da autoajuda em fórmula pronta, um engodo malandro. As pessoas passam a “depender” de trambiques intelectuais e emocionais para lidar com seus problemas, esquecendo que solução, se houver, deverá ser arquitetada pelo próprio, mesmo que sempre requerendo apoios de outrem. Receber apoio não é o problema. Problema é viver de apoio, apagando o sujeito, o protagonista. Paulo Freire, quando falava de “ler a realidade” (1997; 2006), tinha em mente que saber decodificar as entranhas da realidade (da opressão, no caso) era instrumentação fundamental para descobrir que opressão era fenômeno inventado, imposto, manipulado, não sina, pecado, condenação inamovível. No percurso, o oprimido precisa descobrir que não pode sair da opressão, caso não se torne protagonista desta aventura, mesmo buscando/necessitando apoios externos. No extremo, espera do opressor sua libertação, assim como o dependente de autoajuda espera de alguém uma fórmula mágica que o redima.

É neste sentido que repilo fórmulas prontas e passo a construir uma argumentação em torno de como aprender autoralmente na universidade, à luz de um texto que publiquei sobre “metodologia para quem quer aprender” (Demo, 2008) e de outros que trabalham ideias em torno da produção do estudante, pesquisa, educação científica, autoria (Demo, 2015).

I. APRENDIZAGEM É AUTORIA

Podemos abordar aprendizagem de muitos ângulos, sendo o mais vagabundo aquele da aula - aprender é frequentar aula, fazer prova, engolir conteúdo. Postula-se que o professor “causa" a aprendizagem, a ponto de a escola/universidade girarem em torno de aula, desde sua arquitetura (é um monte de sala de aula), até seu sentido pedagógico mais saliente (quando se faz greve, suspendem-se as aulas, porque se imagina que aula é o coração institucional). Em geral, considera-se que, aumentar o tempo de aula é rota segura para melhorar o desempenho estudantil, embora faltem evidências ostensivamente. Para dar exemplo brasileiro, o aumento de um ano no ensino fundamental foi tipicamente contraproducente: o  desempenho nos anos finais do ensino fundamental está despencando (Demo, 2016). Nunca se conseguiu mostrar sua utilidade. Quando se propôs que alfabetização se dá em até três anos, supunha-se que três anos de aula seriam uma garantia do desempenho escolar, mas a avaliação oficial (ANA - Avaliação Nacional da Alfabetização) indica que, após três anos, cerca de apenas metade dos estudantes se alfabetizou, havendo estados onde faltam mais de 80% (Demo, 2015a). Quando constatamos que apenas 9% dos estudantes do ensino médio brasileiro aprendem matemática, apreendemos igualmente que tiveram todas as aulas, fizeram todas as provas, engoliram todos os conteúdos - só não aprenderam. Fomos recentemente surpreendidos com a notícia de uma faculdade sem professor, iniciada em Paris e agora também funcionando no Vale do Silício (Demo, 2016a), na esfera da programação digital (onde é tradicional o autodidatismo, diga-se de passagem), uma proposta privada que acolhe os estudantes selecionados de graça. A proposta tem picardia ostensiva, porque quer espicaçar a mania da aula e a inutilidade de um professor que apenas repassa conteúdo que nunca produziu. Sugere que o modelo de ensino instrucionista - dedicado à instrução, treinamento, domesticação do estudante - não faz mais sentido, porque é tipicamente imbecilizante. O estudante termina o curso sem saber pesquisar, produzir conhecimento próprio metodicamente adequado, sem exercitar autoria, tipicamente vítima fatal de aula.

Tem atrapalhado a muitos inovadores que querem sair da arapuca do ensino o apreço por modismos inconsequentes, como mau uso do construtivismo, sociointeracionismo, metodologias ativas (Demo, 2016b) e outros “ismos”, que, que sempre acobertam o instrucionismo no final das contas. Seria mais produtivo encarar aprendizagem como condição de vida, marca evolucionária, como sugere a neurociência (Doidge, 2007), enfatizando o exercício autoral. Enquanto não emergir autoria no estudante, não houve aprendizagem, mesmo se tiverem sido dadas todas as aulas. Aprendizagem não é função da aula, pois se dá na mente do estudante, não na exposição docente. O estudante aprende, se estudar, ler, pesquisar, elaborar - atividades ditas “autopoiéticas" (de autoformação, de dentro, autorais) (Maturana, 2001. Demo, 2002), sendo ofertas externas, como aula e reprodução de conteúdo, mediação dispensável, para não dizer contraproducente.

A rigor, professor é “mediador" do desempenho estudantil, não causador, não só porque tal pretensão é positivismo deslavado, mas sobretudo porque é impróprio coarctar o protagonismo estudantil. Não há como aprender pelo estudante, embora muita aula assim se proponha. Aprender como autor não deve ser modismo, apenas o reconhecimento de que seres vivos possuem esta habilidade de autoformação, carecendo de motivação intrínseca principalmente (Pink, 2009); motivações extrínsecas também contam, porque são parte do contexto evolucionário, razão pela qual o estudante vai à escola, esperando, contudo, achar lá, não uma instituição prisional (na acepção de Foucault, 1977), mas um ambiente construído apropriadamente para seu autodesenvolvimento. Historicamente, embora educação sempre tenha sido vista como socialização domesticadora (reproduz as desigualdades sociais do sistema) (Bourdieu & Passeron, 1975), também abrigou expectativas emancipatórias como na maiêutica socrática, na tradição latina (educare ou educere significam retirar de dentro), em geral de propensão mais residual. A tradição do ensino sempre predominou, talvez ecoando o profeta (professor, afinal, vincula-se a quem “professa”), mas principalmente a posição autocrítica de dono da verdade, tendo no discípulo um recipiente dócil.  

Sem rebuscamentos desnecessários ou piruetas teoricistas, tomamos aprendizagem como expressão da autoria individual e coletiva, através da qual temos a oportunidade de nos reinventarmos continuadamente na vida, mantendo-nos atualizados frente a todos os desafios que vêm de fora ou de dentro. É questão crucial de protagonismo emancipatório, como diria Freire (1997), em sua interpelação ao oprimido para que, lendo a realidade de maneira crítica autocrítica, consiga erigir-se como autor de sua libertação (Taylor & Cranton, 2012). Um dos móveis mais efetivos da emancipação é o conhecimento científico montado no pensamento abstrato, formal, analítico, modelar, que foi a alavanca tecnológica da emancipação europeia, a ponto de conhecimento científico modernista e emancipação eurocêntrica se fundirem.  A teorização com base em formalização matemática, ao lado da experimentação rigidamente controla e mensurada, tornaram-se o procedimento fundamental da ciência moderna, cujo ímpeto foi exponencializado pela revolução capitalista industrial que pôs o mundo nórdico europeu no topo do mundo, de onde até hoje não saiu, embora sofra pressões atuais asiáticas. Ontologia e epistemologia foram profundamente modificadas e alinhadas, definindo-se como real apenas o que é empiricamente mensurável (lógico-experimental) (Demo, 2011), como procede, como regra, a física moderna (Carroll, 2012; 2016). A habilidade formal analítica é capaz de particionar a realidade em seus componentes mínimos, em cujo fundo encontramos sistemas que seguem leis rígidas de comportamento e que podem ser explicados por argumentos também simples (equações matemáticas, idealmente). A assim dita “navalha de Occam” (https://en.wikipedia.org/wiki/Occam's_razor) prenunciava esta confluência: para uma realidade no fundo simples, há que haver explicação também simples.

Este tipo de conhecimento é mais emancipatório, certamente não por ser eurocêntrico, mas por ser agressivamente desconstrutivo, questionador, confrontador, precisamente a atitude que o oprimido precisa ter para se desfazer da opressão (não esperar do opressor sua libertação). “Ler a realidade” implica estripar a realidade em suas entranhas, por baixo, por dentro, no lado sombrio e oculto, na “arqueologia" (Foucault, 1971), contrapondo-se ao senso comum, a estereótipos religiosos e ideológicos, a narrativas institucionalizadas, tal qual fez Galilei em seu entrever com o Papa. Não se confrontou usando senso comum, teologia, filosofia, mas matemática, mostrando o poder da autoridade do argumento, e a inépcia do argumento de autoridade. De fato, para o oprimido se libertar, precisa saber desconstruir a opressão, sacando que é dinâmica histórica imposta e mantida, não sina ou castigo divino; pode ser mudada, desde que o oprimido se torne protagonista de sua aventura. É neste sentido que hoje muitos enfatizam a importância da “educação científica” como alavanca emancipatória, porquanto educação emancipatória precisa de educação científica. Esta vem entendida, então, como combinação inteligente de qualidade formal e política (Linn & Eylon, 2011. Slotta & Linn, 2009). Quanto à qualidade formal, trata-se da habilidade de produzir conhecimento próprio metodologicamente adequado, de cientificidade reconhecida, formalmente reconhecido como correto; quanto à qualidade política, está em jogo a cidadania que sabe pensar, crítica autocrítica, aberta, sustentável, comprometida com estilos igualitários de sociedade.

Não por acaso, ciência combina com autoria, uma das mais incisivas (cuja culminância se pode ver no Prêmio Nobel), por ser processo de criação, invenção, engenharia, não reprodução. Um dos produtos mais enfáticos da ciência são as tecnologias, que sublinham a condição crescentemente autoral da humanidade, para o bem e para o mal. Por conta disso, os humanos se fizeram fator geológico e evolucionário a seu modo, rivalizando com a evolução natural, por mais que seja ser limitado e frágil. A universidade é testemunha maior desta saga, por ser a maneira institucionalizada em grande estilo de trabalhar esta verve emancipatória, muito embora se renda sempre ao elitismo de pretensos “méritos”. Boaventura dos Santos tem brandido suas armas em favor da “epistemologia do sul” (2009; 2010. Santos & Meneses, 2009), contra o colonialismo do conhecimento eurocêntrico insustentável e prepotente. É facilmente mal interpretado por certas esquerdas que preferem propor a emancipação dos oprimidos via senso comum, sabedorias populares, linguagens cotidianas, o que não passa de “coisa pobre para o pobre”. Senso comum é fundamental para outros fins, como para preservar a identidade cultural e histórica dos povos, em especial em seu linguajar cotidiano, mas não para emancipar. Para emancipar precisamos de um tipo agressivo, desconstrutivo, rompedor de conhecimento, tal qual a Europa fez no modernismo, separando-se de visões anteriores crédulas, simplórias, submissas. Naturalmente, emancipação não pode ser eurocêntrica, pois seria presente grego. Precisa ser “própria" no sentido mais literal. Mas implica capacidade analítica, formal, modelar, abstrata que permite ao oprimido desconstruir a opressão (Flynn, 2012). Daí a importância da crítica autocrítica - conhecimento mais bem posto sabe de seus limites, coisa que o eurocentrismo não sabe.  

II. HIPOCRISIAS ACADÊMICAS

A universidade sabe o que é aprender bem. Em parte porque é o repositório privilegiado das melhores teorias da aprendizagem, produzidas por pesquisadores renomados e reconhecidos, como Piaget (2007, 1990), Vygotsky (1989; 1989a), Maturana (2001, Maturana & Varela, 1994), Papert (1994) etc.; em parte, porque tem uma prática global exitosa com respeito à sua elite acadêmica (mestres e doutores) - ela é formada através do processo de pesquisa, produção própria, autoria, educação científica, não por aula substancialmente. Em especial no doutorado, o candidato precisa arquitetar projeto de pesquisa submetido à “qualificação”, realizar a pesquisa sob orientação formal e oficial, elaborar um livro e defender publicamente com banca. Literalmente, forma-se um AUTOR. Esta qualidade da aprendizagem é, no entanto, negada aos graduandos, a quem se oferecem aulas, provas e repasses, deixando-os excluídos do mundo da autoria do conhecimento. Deformam-se, por se tornarem reprodutores.

Esta hipocrisia é tanto mais ostensiva e imbecilizante, quando verificamos que doutores, chegando à sala de aula, só dão aula, por vezes tacanhamente (por exemplo, exigindo que estudantes não questionem, não interrompam…). Isto pode ocorrer também com Prêmios Nobel - quando estão em aula, requerem estudantes submissos, dóceis. É questionamento global em torno do por que grandes autores, assim explicitamente formados, negam esta chance a seus estudantes (Bok, 2007. Duderstadt, 2003). Provavelmente, uma das razões é o ambiente instrucionista pétreo que escola/universidade adotam, fincado em aula, repasse, prova. O próprio mercado pede, insistentemente, que formados sejam capazes de produzir conhecimento próprio, visto isto como habilidade maior do século XXI - emancipar-se via desempenho científico. Todos os graduandos precisam tornar-se cientistas pesquisadores, em especial autores, para poderem estar à altura dos desafios profissionais atuais, sobretudo saberem renovar continuadamente sua profissão. Um dos exemplos mais citados é PBL (Problem/Project-based Learning) na medicina, uma prática já consagrada que indica ser preferível o médico cientista pesquisador ao “papagaio" das graduações. Em geral, um grupo de estudantes, sob a orientação/avaliação de um mentor ou similar, montam caso clínico “cabeludo" (ou seja, bem desafiador, interdisciplinar, longo) e os estudantes constroem uma proposta de ataque ao problema, de estudo/pesquisa, levantamentos, leitura sistemática, com resultados intermediários elaborados (individual e coletivamente), de preferência divulgados/avaliados em plataforma digital (que permite avaliações múltiplas que vão desde avaliação do mentor, de terceiros, de expertos, de pares, até autoavaliação exposta na plataforma), tudo baseado na produção própria e cientificamente adequada do estudante como resultado final. Explicitamente persegue-se o objetivo de formar “autores de medicina”, não copiadores.

Tem sido comum algum programa de “iniciação científica” (no Brasil, chama-se Pibic, do CNPq) (Calazans, 1999. Demo, 2010), através do qual um estudante de graduação, assumido por doutor professor, realiza pesquisa orientada com bolsa, sendo prática considerada como muito exitosa, embora nunca tenha saído da condição de projeto-piloto ou coisa que o valha. Trata-se do estudante que melhor aproveita a graduação, porque aprende a pesquisar, a fazer ciência, a ser autor. É também comum exigir-se de professores que seguem carreira acadêmica, produção própria sistemática, porque a universidade sabe que a melhor maneira de aprender é via autoria continuada. A melhor qualidade de aprendizagem é reservada a uma pequena elite (mestres e doutores), embora hoje existam questionamentos crescentes em torno da pós-graduação stricto sensu, seja porque os processos tendem a encurtar-se e banalizar-se (crítica também achada no processo de Bolonha na União Europeia), seja pelo contrabando do “mestrado dito profissionalizante”, seja pela produção em massa, etc.

O mundo da ciência promove ostensivamente processos autorais, que culminam, eventualmente, no Prêmio Nobel ou coisa parecida, porque ciência só combina com autoria - não faria qualquer sentido ciência copiada, reproduzida. Uma das distinções mais estridentes entre países desenvolvidos e outros em desenvolvimento é que os primeiros produzem ciência própria, enquanto os segundos “dão aula”. Falando da “emergência do resto” (no fundo, dos BRICs), Amsden (2009) sugere que educação pode ser estratégia importante para emergir no mundo do mercado liberal globalizado, desde que se trate, não de educação retórica, verbosa, mas de educação científica. A importância da educação não está em encaixar-se (sobretudo submeter-se a) requisitos do mercado globalizado, onde qualquer país emergente é logo agrilhoado, mas em ser capaz de conquistar espaço próprio, autoral, que exige manejo adequado do mundo da ciência crítica autocrítica. Quem pesquisa, pode aprender a divergir (na verdade, só aprendemos da divergência), a argumentar e a contra-argumentar, a conviver com dissonâncias instigantes (tipo Wikipédia) (Lih, 2009), a tornar-se autônomo. Quem só engole aula, é penduricalho.

É comum que a academia recalcitre contra o “produtivismo" imposto por instituições vinculadas à carreira docente (no Brasil, do tipo CAPES ou CNPq), por exigirem um ritmo (quantitativo em geral) de produção com avaliação inter pares, facilmente manipulativo e opressivo (o acesso a revistas de maior reconhecimento é muito restrito e dominado por uma gangue fechada, sem falar na destituição do livro, mesmo que tenha muitas edições) (Costa, 2016). Este abuso precisa ser denunciado (Fitzpatrick, 2011), mas não se pode encobrir que grande parte dos “acadêmicos" não produz nada, apenas dá aula, o caso mais repelente de “plágio" na universidade. Nem “produtivismo”, nem produção nenhuma! Na verdade, quem não pesquisa, daria aula de quê?

Tem-se de conhecimento visão imprópria, obsoleta, caduca, vinculada à reprodução, referência totalmente estranha às pretensões emancipatórias sempre apostas a este tipo de atividade. Conhecimento incisivo, decisivo é o “rebelde” (Demo, 2012), como foi o de Galilei que derrubou um modo antiquado de ver a natureza em nome da autoridade do argumento (matematizado), inaugurando o método científico que a muitos incomodou na época. O êxito foi tanto que ciência tomou o lugar da religião e se fez “religião”, no sentido fundamentalista de único conhecimento válido (Harari, 2015; 2017. Stolow, 2012). Mas qualquer visão crítica, sobretudo autocrítica, reconhece que ciência não produz certezas, apenas hipóteses mais bem argumentadas e sempre abertas (Carroll, 2016). Nas “apostilas" ou livros-texto temos conhecimento embalsamado, facilmente superado, que já não move montanhas.

III. ESTUDANTE DE SUCESSO

Podemos, agora, tentar exarar uma argumentação em torno do que seria um estudante de gradução de sucesso, combinando que não será produto de fórmula pronta. Reprodução, aula, repasse não valem! É atraso (Wagner, 2008; 2012. Wagner & Dintersmith, 2015. Zhao, 2009; 2012). No entanto, vale distinguir entre sucesso no mercado e sucesso na vida. Sucesso no mercado é fundamental, naturalmente, porque não vivemos de poesia ou lazer, mas é parte da empreitada voltar-se para a qualidade de vida das pessoas e sociedades. Podemos resumir este desiderato no temo “formação”, para indicar um estilo de aprendizagem centrado na autoria individual e coletiva como razão própria de ser, não por conta apenas de sua utilidade pragmática (Duderstadt, 2003). Autorrealização, ou algo parecido, é referência crucial das pessoas e sociedades, implicando também, sempre, a dimensão do trabalho.

Vamos colocar, de início, o que se “perde" na atual graduação, feita à decoreba e regurgitação de conteúdos quase sempre mal(-)entendidos! Primeiro, é absurdo grotesco chegar a um diploma sem saber ciência, sem educação científica (método e metodologia científica), sem praticar pesquisa como rota comum de autorrenovação permanente na profissão, sem autoria. Segundo, é de se lamentar para o resto da vida ter perdido uma chance deste tamanho, só porque a instituição se basta em reproduzir conhecimento alheio, ao qual se submete vilmente. O estudante é, literalmente, “vítima de aula”. Enquanto poderia ter chegado a construir alguma luz própria, é literalmente “apagado" no processo, porque se evita estudante questionador, inquieto, curioso, rompedor. A “auleiro" inveterado, só vale um estudante imbecilizado, dócil, calado. Terceiro, é neste sentido que a universidade facilmente não é parte da sociedade/economia do conhecimento (por mais que esta designação seja problemática também) (Scholz, 2013), relegada a horizontes ultrapassados, por mais que jure ser a via áurea da mudança bem feita! Universidade é facilmente “igreja velha”, que faz a mesma homilia para cada estação do ano, uma papagaiada geral. Em termos bem concretos, o estudante perde a oportunidade de fazer-se cientista, pesquisador, autor, logo num lugar manejado por cientistas, pesquisadores, autores. Supina hipocrisia.

Para ilustrar este disparate, refiro-me à experiência brasileira da licenciatura e da pedagogia. Quando observamos o aprendizado adequado dos estudantes do ensino médio, vemos que muito poucos aprendem (para o Brasil, 9% apenas; há estados, onde esta cifra é de 3%, sendo a maior a do Distrito Federal, com 17%) (Demo, 2016). Naturalmente, o mau desempenho estudantil “se associa” ao mau desempenho do licenciado em matemática, embora não se possa traçar relação linear (mecanicista). Nos Estados Unidos é uso fazer esta correlação abusada (Horn & Wilburn, 2013), por razões ideológicas grosseiras (responsabilizar o professor sozinho pelo fracasso escolar do estudante, também para, eventualmente, o demitir ou introduzir reformas privatistas, tipo charter school) (Goldstein, 2014). Esta correlação mecanicista não cabe por dois motivos: i) em estatística, correlação não garante causação, apenas associação das variáveis; o estudante pode não aprender matemática por outras circunstâncias (como pobreza familiar, falta de apoio em casa, falta de acesso a bens culturais e intelectuais etc.) (Ravitch, 2013); ii) como aprendizagem se dá na mente do estudante, não na aula docente, o professor “não causa”, media; é motivação externa, que pode ser muito importante (professor é, de fato, muito importante), que nunca substitui a intrínseca (autopoiética). Isto posto, resta certamente o fato de que o mau desempenho estudantil se associa ao mau desempenho do licenciado, e nisto a situação é dantesca: o licenciado em matemática, em geral, não aprendeu matemática (foi vítima de aula, sonoramente), mas, agora, chegando à escola, “quer ensinar”. Não pode dar certo! Não tem qualquer habilidade como cientista, pesquisador, autor - um estranho no ninho.

Condição similar é do pedagogo. Dados sobre aprendizado adequado nos anos iniciais (onde o pedagogo é o professor definido em lei) indicam que temos um viés de subida (o único, porque nos anos finais a queda já é incisiva, sem falar no desastre do ensino médio, em especial em matemática) (Demo, 2016). Estranha muito porque em geral achamos que pedagogo é fugitivo de matemática. Mas é a única matemática que presta alguma coisa na escola. Deixando esta surpresa de lado, quando fazemos a avaliação da alfabetização (Demo, 2015a), salta aos olhos o despreparo do alfabetizador: não parece “alfabetizado”, tamanho é o fracasso escolar. Primeiro, a definição oficial de alfabetizar em até três anos (por conta da “idade certa”), é típica “coisa pobre para o pobre” (só ele é vítima disso; estudantes mais bem aquinhoados socioeconomicamente falando já se alfabetizam no pré-escolar e nunca se imagina que necessitem três anos); segundo, oficializa-se aí a “progressão automática” (a lei fala de progressão continuada, ou seja, avançar aprendendo), pela qual o estudante vai “caindo para cima”, até chegar ao fim do ensino médio quase analfabeto; terceiro, ao invés de idade certa (alfabetização bem definida dura a vida toda), trata-se de “dose certa” - por exemplo, começando educação científica no pré-escolar (com 4 anos de idade), o problema é o professor calibrar o que é o caso trabalhar com a criança, o que cebe no cérebro infantil, de sorte que a criança possa exercer sua autoria, autonomia, protagonismo.

Aqui é o caso questionar frontalmente a universidade. Produz licenciados e pedagogos que “até Deus duvida”. Sabe disso de longa data, mas não se mexe. Continua impávida imbecilizando seus estudantes, como se fosse vocação eterna. Preparar-se para a vida, não só para o mercado, requer hoje formar-se como cientista, pesquisador, autor, impreterivelmente. Protagonismo na sociedade e na economia exigem isso. A universidade, porém, além de persistir como “torre de marfim” que sempre foi (excessivamente “acadêmica”, digamos), coloca-se fora de sua sociedade, inclusive do mercado, ao formar “papagaios" graduados. Este questionamento é tanto mais apropriado, quando se constata que a universidade sabe o que é aprender bem, embora reserve isso para sua elite interna. Graduado vai de aula mesmo, porque importa a aula, não a aprendizagem.

O “sucesso" do estudante vincula-se, pois, ao desenvolvimento de habilidades emancipatórias na graduação, em especial via formação em pesquisa, educação científica, autoria, através das quais pode tornar-se protagonista de sua sociedade/economia, sobretudo de seu destino (autorrealização). Esta visão, ao lado de acentuar a importância de dominar conteúdos (necessários em qualquer profissão), enfatiza superlativamente habilidades processuais genéricas, como pesquisar, elaborar, produzir ciência qualitativamente adequada, que são procedimentos que facultam manter-se atualizado ou autorrenovado continuadamente, inclusive em termos profissionais. É o cúmulo que um estudante receba o diploma sem ter aprendido a estudar. É literalmente estudante que não estuda, pois só estuda para a prova, mal e porcamente. Mas não se pode criticar apenas o estudante; como vítima de aula, há que criticar a instituição, em especial os professores que mantêm este disparate, enquanto se imaginam “profetas” totalmente obsoletos. Estudante não comparece à instituição para frequentar aula (esta pode ser apanhada abundantemente na web), mas para exercitar sua autoria científica sob os cuidados dos professores. Esta ele leva para a vida; aula morre logo na esquina.

Sistematizando a proposta aproximativamente:

a) estudante precisa cultivar assiduamente “educação científica”, com qualidade formal (saber produzir conhecimento cientificamente adequado) e política (capacidade autocrítica da autoria sempre aberta e cosmopolita) (Zuckerman, 2013); implica ocupar protagonismo ostensivo e produtivo na sociedade/economia do conhecimento (Linn & Eylon, 2011), para que possa desenvolver-se de maneira sustentável, equitativa, ética, num planeta para todos; cumpre desenvolver amplamente a capacidade autocrítica (por ser a coerência da crítica); é fundamental a cidadania que sabe pensar, que embasa sua participação na produção científica crítica autocrítica, capaz de protagonismo democrático, republicano, também de “desobediência civil” (Sauter, 2014);

b) estudante precisa tornar-se pesquisador profissional, no sentido de manejar adequadamente as instrumentações voltadas para a produção própria de conhecimento científico, em especial manejar a “cientificidade" de suas elaborações; incluem-se “métodos e técnicas” de levantamento, produção, manejo, análise de dados, ao lado de estatística (essencial para manejar megadados), bem como “metodologia científica”, que abrange a discussão em torno da postulação lógico-experimental (epistemologia ou filosofia da ciência) (Latour,  2013), das problematizações da cientificidade possível (positivismo, dialética, estruturalismos e outros “ismos”), da qualidade dos textos multimodais trazidos pelas novas tecnologias, dos limites e potencialidades do conhecimento científico;

c) o estudante precisa tornar-se AUTOR, como signo mais profundo da aprendizagem adequada, aproveitando a potencialidade emancipatória do conhecimento científico, para si e para sua sociedade, de sorte a conseguir que o desenvolvimento de sua autonomia não se faça em detrimento da autonomia alheia; esta é a mudança maior porque exige mudança docente: estudante aprende bem com professor que aprende bem;

d) ao lado do domínio de conteúdos profissionais, há que acentuar instrumentações fundamentais da produção própria ou da autoria, como estudar, ler, pesquisar, elaborar, incluindo-se aí também expectativas mais modernas da programação digital (Rushkoff, 2010; 2016. Manovich, 2013) (para não ser marionete da máquina); está em jogo o bom manejo do pensamento abstrato, formal, analítico, modelar, matematizado, como modo mais penetrante e desconstrutivo de “ler a realidade”, potencialmente mais emancipatório, desde que crítico autocrítico.

Na graduação costumeira nada disso acontece porque o estudante é vítima de aula.

CONCLUSÃO 

O sucesso do estudante está ao alcance da mão. A universidade tem a solução debaixo do nariz. Bastaria arquitetar a graduação com o espírito do doutorado. Educação científica é proposta como atividade que começa no pré-escolar (Linn & Eylon, 2011), em países onde se vive todo dia a convicção de que oportunidade se constrói via educação científica (crítica autocrítica). A prática acadêmica vigente, porém, é modelada na reprodução mais caduca, completamente fora dos tempos. Tem-se a impressão que o objetivo é o atraso, não o desenvolvimento.

O mercado tem, claro, suas hipocrisias, por exemplo, na assim dita “empregabilidade" - uma sereia perversa: enquanto o trabalhador precisa manter-se alucinadamente atualizado, o mercado não tem qualquer compromisso com ele. É mera mercadoria. A universidade, em nome de sua verve crítica autocrítica (nem tanto, certamente!), não pode subjugar-se à hipocrisia de fomentar o espírito crítico - como faz o mercado malandramente - pela metade: na vale criticar o sistema! Faria bem a universidade se tivesse a coragem de se autoquestionar, em primeiro lugar.

Estudante precisa menos de ajuda do que de oportunidade para tornar-se autor.

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