Published using Google Docs
Untitled document

MANIFESTO ARTIVISTA

 

Estamos aqui em ocupação artivista do Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado. Estamos a ocupar o museu em defesa do museu e não contra o museu. Isto não é teatro, nem encenação, nem nós somos personagens, embora o que estamos a fazer seja uma grande performance. Performance para a qual, a partir de agora, estão todos convocados. Os que a apoiarem e os que a ela se opuserem.

 

Este ato coletivo, ao qual abro um espaço para que possa acontecer, é um gesto simultaneamente artístico e político. Começarei por falar da dimensão política, que é também artística, para depois falar da dimensão artística, que é também política.

 

Politicamente, enquanto público e enquanto criadores de Cultura, estamos verdadeiramente indignados – muito indignados, mesmo – com a desvalorização a que estão votados os museus, as bibliotecas, os arquivos, o teatro, o cinema, a dança, a ópera, as artes visuais, o património cultural deste país e a sua criação contemporânea. Enquanto contribuintes líquidos para o orçamento de estado e enquanto legítimos beneficiários do que o estado nos deve dar em troca, estamos completamente revoltados com a gestão do que é público e, em particular, no que diz respeito às Artes e à Cultura.

 

Não é de animo fácil que tomei a decisão de abrir este espaço de dissensão política e fazer disso o meu trabalho artístico no Museu Nacional de Arte Contemporânea. Tão pouco cada um dos inúmeros participantes que embarcou nesta aventura tomou essa decisão de animo leve. Contudo, neste sistema político-económico não dispomos de outras formas relevantes de fazer ouvir a nossa voz. Não nos chega votar de 4 em 4 anos e depois nada fazer durante os dias, meses, anos seguintes em que assistimos à destruição do setor cultural deste país. Quando a democracia representativa e formal não tem suficientes canais de escuta, partilha, participação e decisão que tenham em conta as nossas vozes, só nos restam atos como este.

 

Durante esta ocupação pacífica mas ativa, faremos uma assembleia cívica para debater medidas e estratégias para os Museus, Arte e Cultura em Portugal. No final desejamos entregar as nossas propostas a um responsável máximo que defenda os interesses do setor cultural, de igual para igual em conselho de ministros, ou seja, o Ministro da Cultura.

 

Artisticamente, esta ocupação vem fechar a troika artivista (videoinstalação + livro + performance) que desenhei com o projeto OS NOSSOS SONHOS NÃO CABEM NAS VOSSAS URNAS. Com os nossos corpos, a nossa energia, a nossa ação, os nossos sonhos, estamos a realizar no museu uma performance que pretende demonstrar ao vivo e in loco, que as chamadas performances artivistas podem contribuir para operar representações de cariz subversivo que funcionem como formas de contrapoder e contestação. Na sequência do processo que realizei de interpretações artísticas de conteúdos antropológicos para compreender interpretações artísticas de conteúdos políticos, esta performance propõe-se demonstrar na prática aquilo que a videoinstalação representa e o livro ensaiou: que a arte, de facto, pode empoderar as pessoas e que o corpo é o medium mais democrático e universal para o executar – todos temos um.

 

O objetivo desta noite passa por experimentar e difundir formas artivistas de obter uma voz na esfera pública com impacto suficiente para constituir os seus agentes como atores políticos. Estamos pois perante um laboratórico artístico-político que inclusive incorpora uma certa dimensão semiológica, pois vários dos artivistas que aparecem nos conteúdos audiovisuais da videoinstalação e no texto do livro, encontram-se aqui in loco a ocupar o museu.

 

             Nesta, como em qualquer performance artivista, são necessários 4 fatores-chave para que seja bem-sucedida:

 

1º - transmitir uma vibrante dimensão dissonante, recorrendo a formas de comunicação mais emotivas e simbólicas que lógico-racionais;

 

2º - exercer-se de forma inesperada, criando impacto pelo elemento surpresa;

 

3º - em espaço e/ou tempo com significado especial, jogando com as noções artísticas de site-specific (associado ao espaço) e de narrativa dramática (associada a datas e eventos simbólicos);

 

4º - ser registada e transmitida pelos mass media e/ou pela internet, fazendo da esfera pública e do ciberespaço público, o palco mediático que gera o público (note-se que sem público não há performance).

 

Sendo um dos elementos de sucesso das performances artivistas o uso do inesperado – é o inesperado que espoleta intensidade emotiva – até à ocupação efetiva dos corpos no seio da instituição eu nada podia revelar no Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado. Em nenhum momento, nenhum funcionário, absolutamente nenhum, soube previamente o que se ia passar. Esse não-envolvimento pretendeu salvaguardar essas pessoas e, simultaneamente, permitir que a ação tivesse lugar. Note-se que se fizesse um aviso prévio, das duas uma: ou a performance não era permitida, e tudo morria antes de nascer, ou era autorizada mas aí já não era disruptora, não tinha força. Como tal, a haver consequências desta ação, devem recair sobre mim, o mentor de tudo isto, e sobre todas as pessoas que partilhando os meus pressupostos artísticos voluntariamente aqui estão a participar nesta ocupação, expressando a sua indignação política em defesa dos Museus, das Artes e da Cultura.

 

O espaço desta performance é o museu, mas convoca para o seu interior uma série de simbolismos para além do museu. Traz a ocupação do espaço público, da Praça, da Polis para dentro do museu e faz disso arte, evocando o espírito da Acampada do Rossio, do Occupy Wall Street, das Acampadas espanholas e de todos os occupys internacionais que há não muito tempo atrás, em inúmeros espaços públicos de todo o mundo, trouxeram a discussão assembleária direta e sem representantes para a esfera pública, utopia da sempre mítica ágora grega, matriz do sonho Democrático.

 

Pondo o meu ego de lado, tarefa como sabem sempre difícil para um artista e nunca inteiramente conseguida, aquilo em que sempre me tenho tentado centrar, que me moveu chegar a este ponto de não retorno e que espero que saibamos concretizar hoje aqui, é realizar o extraordinário, todos juntos, em nome do que é Belo e do que é Justo. Ao realizarmos esta ação podemos mudar algo na sociedade - ou não! - no entanto, com o exemplo desta ação de certo modo somos nós próprios que nos podemos transformar. É uma mudança que vem da expressão de uma consciência cívica mais crítica, audaz, criativa, interventiva, sentida e livre, que não se esgota nas normas institucionais, nem no mero voto de 4 em 4 anos e que pretende levar-nos a viver uma experiência política com maior intensidade. A viver uma maior intensidade pela emoção na crença em valores em que acreditamos, podendo ser igualmente inspiradores para outros. A viver uma maior intensidade pela emoção no animo da lúdica dramatização política. A viver uma maior intensidade pela emoção na partilha com o outro em luta pelo que consideramos bem comum. A viver uma maior intensidade pela emoção de rompermos com códigos normativos porque não baixamos os braços ao injusto dominante. E sendo maior esta intensidade emotiva de transformação do que nos rodeia e, indissociavelmente, de nós próprios, com esta nossa performance artivista pretendemos afirmar que estamos VIVOS. Estamos vivos para além de um sistema que desmotiva, que mata o sonho e desencanta com os seus vícios, limitações e falhas. Porque estamos dispostos a melhorá-lo. Toda e qualquer performance artivista, só por existir, afirma na esfera pública o próprio ideal de Democracia. E enquanto nós, cidadãos ativos para além da norma e da estrita regra, estivermos vivos, esse ideal não morre. Nem dentro de nós, nem nas ruas, nas praças ou nos museus de todos.

 

É chegados a este ponto, onde cessa o discurso e a performance segue inexoravelmente, que termino citando Hannah Arendt:

 

"Nas formulações de Péricles – e, aliás, também nos poemas de Homero – fica eminentemente claro que o significado mais profundo do acto praticado e da palavra enunciada não depende da vitória ou derrota, e não deve ser afectado pelo resultado final, pelas suas consequências boas ou más. (...) é da sua natureza violar os padrões consagrados e atingir o plano do extraordinário, onde as verdades da vida quotidiana perdem a sua validade (...) enquanto a polis inspirar os homens a ousarem o extraordinário, tudo estará seguro (...) A grandeza, portanto, ou o significado específico de cada acto, só pode residir no próprio desempenho - na performance - e não nos motivos que o provocaram ou no resultado que produz."

Rui Mourão

Lisboa, 4 de julho de 2014