Desafios e ideias para o resgate, produção, multiplicação e uso das sementes crioulas

Luana Rockenbach*

        As sementes são mantidas por pessoas, e para contextualizar as sementes crioulas se faz necessário olhar para o modelo de produção que determina a paisagem do campo e sua configuração social. Quem são as e os guardiões de sementes, em que espaço cultivam, quais desafios enfrentam, qual modelo promove a biodiversidade, estimula a juventude a produzir e a manter essas variedades.

O modelo (machista) de produção do agronegócio: dependência, dominação e exploração

 A estruturação fundiária do Brasil ainda é uma herança do colonialismo, do antigo sistema de sesmarias, os grandes proprietários de terras no Brasil ainda são os herdeiros dos amigos do Rei. As mesmas terras, que são propriedade das mesmas famílias privilegiadas, seguem produzindo cana, café e gado, e mais recentemente soja e milho. Infelizmente segue havendo uma desigualdade muito grande em relação à distribuição das terras e o acesso a créditos entre grandes e pequenos produtores. Isso fica muito claro quando vemos que os agrotóxicos têm isenção de impostos, e que o Pronaf, um programa destinado ao fomento da agricultura familiar surgiu muito tardiamente apenas na década de 90, e vem sendo desfinanciado e aniquilado pelo atual governo. Quando a revolução verde começou a industrializar a agricultura, a maioria das e dos camponeses foi seduzida pelas promessas de produtividade e pelo sonho de se tornar grandes produtores. Na agricultura industrial, as lavouras são tomadas pelas sementes híbridas e logo pelas transgênicas, e quem tinha vacas leiteiras, criava galinhas ou porcos teve que se adequar às exigências das indústrias. Contratos de exclusividade impedem as famílias de comprar insumos e de vender a produção a terceiros. Um sistema de dependência que permite às empresas determinar os preços que deveriam ser regulados pelo Estado. Especialmente as indústrias de proteína animal exigem mudanças e investimentos para a modernização e especialização da produção, o que faz com que as/os integrados se mantenham endividados/as; logo, sigam produzindo, pois a indústria precisa atender às demandas do mercado de exportação. Se a renda das/dos produtores for alta, estes poderiam decidir se “aposentar” ou mudar de setor. O endividamento é muito conveniente às empresas como um sistema de dominação; castra a possibilidade das/dos integrados de investir em outra fonte de renda, garante a produção enquanto durar a dívida e inibe qualquer ação de rebeldia ou rompimento de contrato. Um fino equilíbrio que depende de boa produção para que a família se mantenha até a próxima dívida. Quando a produção se vê afetada por alguma crise, inundação, seca, praga, ou greve nos transportes, esta verá sua dívida crescer em uma bola de neve de juros. Se conseguirem uma boa produção, liquidarão as dívidas; se não puderem sair das dívidas, provavelmente sejam forçados a vender as terras ou instalações para alguém que tenha maior poder aquisitivo. Outros/as, entrarão para o alarmante e crescente índice de depressão e suicídio da população rural. Assim se dá a concentração de terras e riquezas no agronegócio¹.

        Outra característica desse modelo é a exploração, tanto de recursos naturais quanto da mão de obra familiar. Em 2020, quando a estiagem secou as vertentes e fontes, produtores de sistemas integrados de aves, gado leiteiro e suínos se viram forçados a recorrer aos sistemas de tratamento de água dos municípios, e a transportar água em caminhões pipa dos rios mais próximos até a unidade de produção. Milhares de famílias tiveram seu lucro perdido e muitas saíram endividadas. A seca escancarou que o modelo de integração só é rentável para as famílias quando há exploração gratuita de matérias-primas para sua produção: a água e o trabalho da família. Na agricultura industrial, as/os agricultores, empresário/as rurais, passam a ser mão de obra da indústria em condições de trabalho que seriam ilegais para contratar qualquer trabalhador assalariado. Sem limite de horário, sem fim de semana nem feriado, sem férias, nem décimo terceiro salário. Almeida sintetiza o problema: “nesta malha de relações de interdependência e sustentação ideológica, o contrato de compra e venda firmado entre empresas e produtores, que se reveste num contrato de prestação de serviço esconde na servidão por dívidas uma forma de trabalho forçado, sob o manto da legalidade” (2006, p. 4). Nesse sentido, Berlan (2011) define as/os agricultores industriais como “tecnosservos” do complexo agroindustrial-financeiro. Nas palavras de Magalhães: “A indústria consegue ter um lucro absurdo que jamais obteria se tivesse de contratar trabalhadores livres para realizarem as tarefas que os agricultores realizam a base da auto-exploração e de suas famílias.” (MAGALHÃES 2001, apud ALMEIDA 2006, p. 5)

        Nesse modelo de produção, houve uma redução da biodiversidade no campo desde as sementes às raças de animais, e se criou uma relação de dependência das famílias para com as empresas de sementes e insumos, e indústrias da carne e do leite, que passaram a ditar as regras e valores da produção. As variedades crioulas de milho perderam valor no mercado e deram lugar às sementes híbridas e transgênicas nos roçados. No caso dos porcos e galinhas crioulos, além da desvalorização e de uma competição injusta com relação aos custos de produção, sua comercialização é dificultada por normas sanitárias, o que termina restringindo sua produção ao autoconsumo. As sementes crioulas foram marginalizadas no mercado por leis de padrão Upov (União para a Proteção de Obtenções Vegetais) e por normas sanitárias que exigem cadastros e certificados aos quais as sementes crioulas não se encaixam. Ao passo em que as empresas sementeiras ascenderam, as sementes crioulas perderam espaço e no caso dos milhos, foram irresponsável e violentamente contaminados por transgênicos.

A Violência do Milho Transgênico

        Atualmente, quase todos os milhos oferecidos nas agropecuárias são transgênicos, assim também a maioria dos alimentos encontrados no mercado tem base em grãos geneticamente modificados. Não podemos esquecer que a contaminação das variedades de soja foi em sua época estratégica para induzir os países na América Latina a aprovarem o cultivo de transgênicos. Os poucos países que conseguem manter alguma resistência ao cultivo de OGMs (Peru, Equador, Venezuela e Bolívia na nossa América) enfrentam na contaminação por transgênicos a imposição de um modelo de produção explorador e imperialista que ameaça a biodiversidade e soberania alimentar dos povos.

        O protocolo de Cartagena sobre Biossegurança prevê o princípio da precaução, no qual, o Estado deveria criar regras que assegurem a coexistência das variedades tradicionais com as transgênicas introduzidas. Essas regras deveriam garantir aos agricultores/as a possibilidade de plantar as suas variedades sem risco de contaminação.

A CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança), responsável pela liberação de variedades transgênicas no Brasil, define em sua Normativa n° 4, uma distância segura para coexistência de 20 metros acrescidas de 10 linhas de milho comum ao redor do milho transgênico. Não existe fiscalização, poucos agricultores respeitam essa normativa, e especialmente em pequenas propriedades a coexistência é impossível.

        O estudo de monitoramento do fluxo gênico das lavouras de milho transgênico e não transgênico na região Oeste do Paraná realizado pelo SEAB na safra de 2009, apontou contaminação de 27 das 40 amostras coletadas a 120 metros de distância da lavoura transgênica. Isso representa 67,5% das lavouras contaminadas a uma distância maior que a definida como segura pela CTNBio. O índice de contaminação  das 27 amostras contaminadas foi maior que 1%, alcançando 5%, valores que impossibilitam a agricultura orgânica, que exige uma porcentagem abaixo de 0,9%, e já enquadraria os produtos como contendo transgênicos pela Lei de Rotulagem. Mais que uma irresponsabilidade, o fato de a CTNBio definir uma distância segura que não é efetiva para evitar a contaminação dos milhos crioulos escancara uma bioviolência² institucionalizada que ameaça a nossa biodiversidade.

                Paralelo a isso agricultores/as ficam sujeitos/as a possíveis cobranças de royalties sobre os milhos contaminados com a tecnologia dessas empresas. Um exemplo disso é o caso do agricultor canadense Percy Schmeiser que teve sua lavoura de canola contaminada pela canola transgênica do vizinho. Percy foi processado pela Monsanto por guardar sementes patenteadas com a tecnologia RR (Roundup Ready).

        As análises de transgenia são caríssimas, o que coloca agricultores/as diante de riscos e incertezas em relação à pureza de suas variedades, sua soberania e segurança alimentar e sua produção comercial. Uma verdadeira bioviolência contra camponeses/as, a biodiversidade e a humanidade. Além de caros, os testes de transgenia detectam somente proteínas de variedades transgênicas aprovadas no país³. Ou seja que não consideram a contaminação por variedades aprovadas em outros países que cruzam a fronteira como grãos para alimentação humana e animal que são perdidos durante o transporte podendo chegar a crescer, ou que são cultivados de maneira inocente pelos agricultores, tampouco levam em conta a possível contaminação das lavouras produtoras de sementes. Se consideramos o histórico de contaminação das variedades, que claramente foi estratégica para a aprovação dos transgênicos em muitos países, como foi o caso do Brasil, e escândalos históricos como o caso do milho Starlink4, é ingenuidade da nossa parte acreditar que nossas sementes estão expostas somente às variedades transgênicas aprovadas para cultivo no país.

        As análises de transgenia deveriam incluir variedades aprovadas em outros países e variedades que ainda estão ou que estiveram em fase de testes antes de serem aprovadas para cultivo. É mais que urgente garantir o acesso facilitado e gratuito de agricultores/as a essas análises, a indenização de produtores orgânicos que tenham perdas na produção pela contaminação por transgênicos e assegurar uma distância mínima segura e a fiscalização sobre as lavouras transgênicas. De fato, a única maneira de garantir a pureza das variedades silvestres e tradicionais, a soberania e segurança alimentar e produtiva dos povos e da nação, é com a proibição definitiva dos transgênicos, e ainda assim é provável que essa informação genética esteja presente em variedades tradicionais contaminadas, ameaçando nossa biodiversidade por vários anos.

As sementes, o mercado e as guardiãs e guardiões de sementes

O contexto social rural com certeza é um dos principais desafios para a produção e conservação da biodiversidade, porém o campo legal impõe restrições que colocam as sementes crioulas em um espaço muito limitado de comercialização. Registros e leis de padrão Upov, e o patenteamento de variedades transgênicas, permitiram a mercantilização e monopolização das sementes. Esse conjunto de leis padronizou a marginalização das sementes crioulas nos 76 países que aderiram à Upov e nos demais que aderiram aos TRIPs (Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio), muitos deles tiveram sua adesão forçada por tratados de livre comércio.5 A ascensão das indústrias sementeiras levou à concentração das sementes crioulas em bancos de germoplasma, destinadas à pesquisa e criação de novas variedades. No campo, as sementes crioulas deram lugar às industriais, e as variedades crioulas que seguem sendo cultivadas in situ em sua maioria são destinadas ao auto-consumo das famílias. A comercialização das sementes crioulas ficou restrita às feiras de sementes, ao intercâmbio entre agricultores, aos sindicatos e às compras governamentais (a exemplo do PAA-Sementes). Para além da marginalização, a versão mais recente da Upov perigosamente abre brechas legais à criminalização dos agricultores por guardarem as sementes.6 Obviamente é importante a valorização do trabalho dos obtentores de novas variedades, porém, ao marginalizar as/os agricultores e as sementes crioulas, o conjunto de normas estabelecidas desvirtua os objetivos da criação da Upov. Também se faz necessário lembrar que as sementes usadas pelos melhoristas no desenvolvimento de novas variedades são fruto do trabalho de camponeses/as que por gerações se dedicaram ao melhoramento destas.

Os sistemas participativos de garantia também se aplicam às sementes, porém no que tange à comercialização, as sementes orgânicas devem atender à regulamentação estabelecida pelas leis de sementes e mudas, logo, devem ser registradas. Diante de um espaço de comercialização tão limitado, poucos agricultores e agricultoras se sentem motivados a produzir sementes crioulas em quantidade. A venda em feiras também dificulta a emissão de notas e comprovação de renda nessa atividade. Quem produz legumes e verduras para vender e precisa comprar sementes, não encontra sementes crioulas em quantidade no mercado e vê as sementes industriais como única opção. São fatores que se retroalimentam e que definem o território das sementes crioulas junto à agricultura familiar e à agroecologia.

É na agricultura familiar que se encontram as/os guardiões da agrobiodiversidade. Apesar de levarem esse nome tão místico, e de realizarem um trabalho extraordinário, não podemos cair no romantismo em relação aos guardiões de sementes, é importante lembrar que são agricultores e agricultoras limitados às condições e capacidades humanas que enfrentam os mesmos problemas e dificuldades da agricultura familiar. Sem incentivos estatais, sem assistência técnica especializada, com áreas de terra marginalizadas ou muitas vezes sem deter nenhuma propriedade de terras. As/os guardiões de sementes são movidos/as pela paixão, pelo exotismo das variedades e por um sentimento de responsabilidade para com as gerações passadas e futuras. São as/os responsáveis pela conservação de dezenas, centenas de variedades em suas propriedades, muitos deles/as são as/os únicos que as cultivam em sua região.

Sem dúvidas há uma demanda crescente de sementes crioulas e dos saberes a elas associados. A valorização destas abre um horizonte de continuidade dessas variedades que é clara quando vemos o sucesso das feiras de troca de sementes, verdadeiras festas da agrobiodiversidade. No campo das perspectivas, diante do cenário apresentado, se faz necessário fortalecer os espaços de intercâmbio e comercialização de sementes crioulas, feiras, sindicatos, bem como os grupos e cooperativas, de modo a tornar a produção de sementes crioulas uma fonte de renda complementar à renda familiar. A atuação dos movimentos sociais no campo é essencial para a articulação de grupos, feiras de troca, para trazer os debates em torno das sementes, valorizar os saberes ancestrais e potencializar a voz de camponeses e camponesas na construção do conhecimento e na luta pela igualdade de direitos e oportunidades. É através dos movimentos e organizações sociais que se dá a representatividade de camponeses e camponesas em instâncias de tomada de decisões políticas, essa representatividade abre perspectivas de proteção legal e da garantia dos nossos direitos.

O território efetivo da mulher

        A distribuição fundiária no Brasil e no mundo é muito desigual entre homens e mulheres. O campo da produção agropecuária ainda é bastante machista e dominada por homens. No âmbito da unidade de produção, o espaço cultivado pela mulher, que podemos chamar de território efetivo, se limita ao entorno da casa, pomar e horta. Em geral são as terras mais difíceis e não maquináveis. As terras produtivas, a maior parte da unidade de produção, em geral é cultivada pelo homem com a “ajuda” da mulher e dos filhos, que poucas vezes tem participação na renda e nas decisões. A sobrecarga de trabalho das mulheres nas propriedades rurais é comum. Cumprem uma tripla jornada de trabalho: se soma o trabalho reprodutivo doméstico à responsabilidade sobre algum familiar idoso, enfermo ou das crianças, ao trabalho de “ajuda” na produção e ao cuidado dos quintais, horta e sementes. A excessiva demanda de trabalho leva ao abandono de muitas variedades, já que dentre todas essas tarefas, o cuidado da horta, quintal e das sementes muitas vezes é tido como um lazer. Considerado como tal, é uma das primeiras atividades a ser deixada. Desproporcionalmente ao espaço limitado de terra, as mulheres são responsáveis pela manutenção de uma imensa biodiversidade e pela produção de alimentos saudáveis que diariamente fazem parte das refeições. Conhecidas por miudezas, e ressignificadas por grandezas pelo Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), essas variedades têm alto potencial produtivo, e se valorizadas podem se tornar parte da renda familiar7.

        No cenário agrícola atual, as sementes crioulas estão tão marginalizadas quanto as mulheres nas propriedades. Ambas têm seu potencial limitado por falta de espaço e de incentivo, e porque não dizer, pela opressão do modelo agroindustrial patriarcal. A exploração das mulheres, bem como a exploração das sementes, gera muito lucro e sustenta o capitalismo. Como seria o campo agrícola se as mulheres tivessem a mesma terra que os homens, que seus próprios companheiros, e o mesmo tempo disponível para cultivar? Não se trata de dividir as terras e expandir o território efetivo da mulher. O feminismo camponês popular nos orienta para um campo de igualdade. Trata-se de garantir a participação das mulheres e jovens na produção, na renda e na tomada de decisões sobre como, quanto e o quê produzir. Sem feminismo, a agroecologia perde seu potencial de transformação social e pode se reduzir a um conjunto de técnicas de produção.

                          

A juventude rural:

        Quando um jovem homem permanece na unidade de produção ou retorna depois dos estudos, há expectativa de que ele assuma a propriedade e dê continuidade à atividade desenvolvida pelo pai. É mais fácil para os rapazes retornar ou permanecer no campo para produzir porque isso é esperado deles. Ainda assim, tanto os quanto as jovens muitas vezes são vistos como mão de obra familiar, sem espaço na tomada de decisões e sem espaço para expressar sua forma de cultivar e pensar a produção. Esse é um fator que contribui para o êxodo da juventude rural, pois nem sempre os jovens vão querer seguir com o modelo de produção desenvolvido pelos pais.

        No caso das mulheres jovens, há uma expectativa social e familiar de que a jovem permaneça ou retorne à propriedade para cuidar dos pais e ajudar nos trabalhos da casa e da produção. O campo não oferece futuro às jovens se tiverem que ocupar este lugar, por isso as mulheres jovens são as primeiras a saírem do meio rural. As jovens quando voltam à casa muitas vezes só cultivam o mesmo espaço marginalizado que é ou foi cultivado pela mãe. Retornar à propriedade dos pais nos impõe um grande desafio: ou enfrentamos o sistema machista e patriarcal no âmbito familiar e da propriedade rural, ou estaremos contribuindo para a sua reprodução. Tampouco nos convém sentar em um trator e ocupar o lugar do homem nas terras que produzem para o agronegócio, porque só isso não transforma a paisagem nem nos liberta desse modelo de dominação e exploração. É necessário repetir que feminismo não busca que as mulheres ocupem o lugar dos homens, senão que luta pela igualdade de direitos e de tomada de decisões, contra a violência, opressão e exploração. Sem feminismo não há juventude rural na agroecologia! É essencial que os movimentos sociais, técnicos/as e extensionistas rurais efetivem o feminismo dentro de suas organizações, e que tragam para o ambiente familiar uma perspectiva de igualdade, libertação e fortalecimento das mulheres e da juventude.

        Houve uma época em que os estudos eram um fator que determinava o êxodo dos jovens camponeses para as grandes cidades. As universidades eram poucas e muito distantes do campo. Os e as jovens que buscaram se identificar na universidade em cursos de agronomia, se encontraram com uma formação para o agronegócio, para a produção em larga escala, química e mecanizada. Muitos foram levados a ver o campesinato no qual cresceram como ultrapassado, primitivo, pouco produtivo e pouco rentável. Longe do ideal, as universidades estão mais próximas e os cursos de ensino à distância permitem aos e às jovens estudar em casa. Os estudos já não são um fator determinante, porém a juventude que concluiu seus estudos, quando permanece ou regressa ao campo, muitas vezes se depara com um cruel e injusto discurso de uma sociedade que entende quem volta para o campo como mal sucedido(a), especialmente quando o curso que concluiu não é da área agrícola. Seguramente minha mãe não foi a única a escutar a frase “Mas porque tua filha não trabalha, não arruma um emprego?”. Como se voltar ao campo não fosse uma opção e a agricultura não fosse um trabalho. Se o campo do discurso e da expectativa social não é muito motivador para a juventude rural na agroecologia, a escassez de políticas públicas específicas para essa juventude escancara a falta de incentivo por parte do Estado.

Considerações finais

        Longe de encerrar o tema e de descrever todos os fatores que o envolvem, é necessário acrescentar que a conservação, produção e o resgate das sementes crioulas vai além de um conjunto de técnicas. Olhar para as múltiplas dimensões e desafios que envolvem o tema nos permite apontar caminhos possíveis e ações indispensáveis. O fator social é o pilar para pensar as sementes crioulas, de modo que é extremamente necessário valorizar, estimular e potencializar as pessoas que as cultivam em seus territórios e os saberes que trazem com essas variedades.

As sementes, as mulheres e a juventude são chaves para projetar um modelo de produção mais sustentável, igualitário e responsável com a biodiversidade, por isso são tão essenciais para a agroecologia. Soa repetitivo, mas é necessário lembrar que sem sementes crioulas e sem feminismo não há agroecologia, e cada vez que enunciamos essa frase estamos apontando a todos esses fatores limitantes e a outras violências que não entraram nesse texto. Se bem é um campo de dificuldades e desafios, é nas sementes crioulas, na agricultura familiar, na agroecologia e no feminismo camponês e popular que encontramos as perspectivas de um futuro biodiverso, de produção e alimentação saudável, de soberania alimentar e de igualdade de gênero.

Notas:

1- Tomo a liberdade de relatar uma história que passou na minha comunidade: uma família financiou a compra de 3 aviários. No começo a produtividade foi boa, porém uma peste nos frangos levou à perda de um lote inteiro. Somado a isso, as perdas na produção decorrentes das greves dos caminhoneiros em 2015 e 2018 impediram a família de pagar as prestações do financiamento. O banco passou a reter o pagamento dos lotes, de modo que eles já nem viam a cor do dinheiro e nem tinham como pagar os funcionários. A demanda de trabalho era grande demais para a família de três pessoas e ninguém trabalha para outros de graça. Já não tinham como produzir e sem produzir, não tinham como pagar o financiamento. Venderam os aviários e a dívida para alguém com maior poder aquisitivo. Histórias como essa não são um fato isolado, são relatos comuns em períodos de crise.
2 - Faço uso desse termo em contraposição à ideia de biossegurança. Infligir de maneira hostil uma genética patenteada que ameaça a nossa biodiversidade deveria ser considerado terrorismo biológico.
3 – Os reagentes para a produção dos testes de transgenia são liberados aos laboratórios pela CTNBio. Os laboratórios produzem testes para as variedades aprovadas para cultivo no Brasil.
4- O milho Starlink é uma variedade cultivada para alimentação animal. Entre 1998 e 2000, a variedade contaminou lavouras vizinhas e chegou à cadeia alimentar humana provocando reações alérgicas em consumidores. Milhares de toneladas de milho e pelo menos 300 produtos derivados foram recolhidos dos mercados. O Starlink contaminou outras variedades de milho doce e pipoca, e foi encontrado nas sementes de 71 empresas contatadas na época. Em 2002 ainda foram encontrados traços do Starlink nos alimentos. Esse escândalo levou à criação da lei de classificação vegetal para evitar que variedades destinadas à alimentação animal cheguem à cadeia alimentar humana, porém não se aumentou o cuidado com o risco de contaminação de lavouras vizinhas.
5- Ao aderir aos tratados de livre comércio, os países são forçados a assinar a última ata da Upov, que estende os direitos do obtentor à colheita e industrialização da produção gerada a partir das sementes registradas. Também estende os direitos às variedades similares ou potencialmente derivadas da variedade registrada. A Upov 91 se assemelha às patentes comerciais sobre inventos.
6- A ata da Upov 91 acaba com o privilégio do agricultor de guardar sementes registradas para uso próprio e para comercialização entre agricultores. Também estende os direitos do obtentor a variedades similares ou potencialmente derivadas de alguma variedade registrada. Para dimensionar as consequências da possibilidade de criminalizar agricultores, recomendo uma pesquisa sobre a proibição do uso tradicional das sementes na Colômbia quando da assinatura do TLC com os EUA. Toneladas de sementes crioulas foram enterradas em aterros, lavouras foram incendiadas e agricultores foram detidos. Os fatos também estão relatados no documentário “9.70 Semillas Certificadas” de Victoria Solano.
7- A Caderneta Agroecológica, que sistematizou a produção das mulheres nas hortas e quintais, possibilitou visualizar em valor monetário a riqueza produzida pelo trabalho feminino nesses espaços. Foram anotadas as vendas, trocas, doações e tudo o que foi consumido pela família. A média da produção mensal foi de R$ 820 a R$ 940 reais nos resultados de 2018. A caderneta também expõe a ampla diversidade de variedades cultivadas e de produtos processados produzidos pelas mulheres. Esses produtos vêm sendo marginalizados por normas sanitárias que limitam sua comercialização à unidade de produção.

Referências:         

ALMEIDA, Guilherme Eidt Gonçalves de. Fumo: servidão moderna e violação de direitos humanos. Curitiba: Terra de Direitos, 2005.

ALMEIDA, Guilherme Eidt Gonçalves de. Integrados na Servidão - A cadeia Produtiva do Tabaco. 2006. Disponível em: https://actbr.org.br/uploads/arquivo/55_219_Cadeia_produtiva_fumo.pdf
Acessado em: 09.02.2021

ALVEZ, Luciana Medeiros; ALVARENGA, Camila; CARDOSO, Elisabeth; CASTRO, Nayara de; SAORI, Sheyla; TELLES, Liliam. Caderneta agroecológica e os quintais : Sistematização da produção das mulheres rurais no Brasil. Minas Gerais: Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata, 2018.

ANDRIOLI, Antônio Inácio; FUCHS, Richard. Transgênicos: as sementes do mal - a silenciosa contaminação de solos e alimentos. São Paulo: Expressão Popular, 2012.

BERLAN, Jean-Pierre: Ele semeou, outros colheram: a guerra secreta do capital contra a vida e outras liberdades. In: ZANONI, Magda; FERMENT, Gilles (orgs.). Transgênicos para quem? Agricultura, Ciência e Sociedade. Brasília; MDA, 2011. p. 143- 170.

FERMENT, Gilles; ZANONI, Magda; BRACK, Paulo; KAGEYAMA, Paulo; NODARI, Rubens Onofre. Coexistência : o caso do milho. Brasília: MDA, 2009.

SEAB. Monitoramento do Fluxo Gênico Entre Lavouras de Milho Transgênico e Não Transgênico na Região Oeste do Paraná. Nota Técnica. 2010

Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança da Convenção sobre Diversidade Biológica - CDB Disponível em: http://ctnbio.mctic.gov.br/documents/566529/665465/PROTOCOLO+DE+CARTAGENA+SOBRE+BIOSSEGURAN%C3%87A+.pdf/9a7809d2-4bd5-4b5c-bb3e-c7d1991d134a;jsessionid=0E9562E0CBF676612943ADEFFF1C1379.columba?version=1.0  Acessado em 06.02.2021

Governo suspende Pronaf Mais Alimentos por falta de verba. CONAFER, 2020. Disponível em: https://conafer.org.br/2020/01/31/governo-suspende-pronaf-mais-alimentos-por-falta-de-verba/ Acessado em 07.02.2021

UPOV. Convenio Internacional para la Protección de las Obtenciones Vegetales. Ginebra. 1978. Disponível em: https://www.upov.int/edocs/pubdocs/es/upov_pub_295.pdf
Acessado em 09.02.2021

www.planalto.gov.br