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NOVA INFRAESTRUTURA DO CONHECIMENTO

Pedro Demo (2012)

Neste 8º e último remix sobre Weinberger (2011), vamos analisar dois desafios do conhecimento em rede: enfrentamento da realidade e nova infraestrutura da net. Weinberger começa citando Welch, Executiva da General Electric e da revista Fortune, que, em 1981, resolveu abolir a produção de energia nuclear, depois do derretimento da usina Three Mile Island. “Enfrentar a realidade soa simples – mas não é” (2001:103). Expertos da empresa se opuseram, chegando a dizer que ela não tinha ideia do assunto. Ela admitiu que isto era provavelmente o caso, mas tinha a vantagem do olhar de fora (Id.:191). Tomar decisão sempre é enfrentar a realidade e levar a cabo. Enfrentar a realidade, porém, implica saber o que do quê, e, na era da net, há demais “o quê”... No matagal de reivindicações e dados, é preciso acertar o que escolher e em que confiar.

Conhecimento perambula agora numa infraestrutura nova, a net, na qual ganha outros contornos e reptos, mudando substancialmente sua constituição. Acentua-se muito mais seu lado da descoberta incessantemente inovadora do que de resultados consolidados, que, na prática, não existem mais. Estes aparecem também como material para novos desafios, não como portos seguros. Literalmente, a net está convulsionando o conhecimento, para desgosto da academia acostumada com produtos acabados e intocáveis. O fato de que conhecimento é feito a mil mãos, também por quem, do ponto de vista da academia experta, não poderia participar, significa ganhos e perdas, naturalmente. Mas este reconhecimento é menos oportuno que o da realidade da net, que veio para ficar. Conhecimento não escapa de viver em rede e sofrer todas as consequências dessa nova aventura. Monopólios acadêmicos caem, surgindo outros horizontes, também não formais.

I. OUTRA LIDERANÇA

Exemplo de como enfrentar a realidade de maneira mais efetiva e inteligente é a reconstituição do fenômeno da liderança que agora também se trama em rede. É propriedade do grupo, não de alguém. Weinberger cita o exemplo de Burgess (da Academia Militar Americana), experto no desenvolvimento de liderança. Não fala de líderes, mas do grupo capaz de liderança coletiva. “A mudança ocorreu em parte porque a net tornou as pessoas mais familiares com benefícios de se conectarem atravessando linhas hierárquicas. Por exemplo, CALDOL (Centro para o Avanço do Desenvolvimento do Líder e Aprendizagem Organizacional) cresceu de um fórum de discussão online que Burgess e seus colegas criaram e que não expõe o ranking dos que aí postam. Mas muito do ímpeto por trás de ver liderança como propriedade distribuída pela equipe vem da natureza das duas guerras que os Estados Unidos começaram na primeira década do milênio. Como Major Rob Stanton explicou (em entrevista de 22 de fevereiro de 2010): ‘No mundo de hoje, não basta ser capaz de fazer o trabalho da pessoa que está hierarquicamente acima. É preciso fazer 18 mil trabalhos diferentes. Temos que ser capazes de manejar o sistema de água, gerir um encontro no hall da cidade, emitir microcréditos, ser politicamente preparado... e isto se for um E5 (sargento) com 25 anos de idade” (Weinberger, 2011:161). Tornou-se, então, claro que a unidade exitosa – aquela que cumpre melhor sua tarefa e objetivo – consiste de soldados que não só cultivam um espectro amplo de habilidades, mas igualmente aprendem rápido e respondem criativamente. Cada um toma iniciativa e colabora. Ainda obedecem a seus “superiores”, mantendo-se certo sentido de hierarquia, mas o grupo como um todo assume características de liderança, para corresponder a um ambiente que muda rápido demais para uma hierarquia dar conta (Weinberger, 2010. Burgess, 2010).  

É ilustrativo o caso notório da Wikipédia, uma empreitada coletiva de êxito inegável no campo da produção de conhecimento, sob a batuta (também contraditória, porque tem a última palavra sempre) de Wales. Uma vez Wales resolveu definir o que a Wikipédia não é (http://en.wikipedia.org/wiki/Wikipedia:NOT): não é um editorial de pensamento original; não é receituário de meios de promoção; não é bola de cristal (Forte & Bruckman, 2008). Os debates entre “inclusionistas” (participantes que querem incluir algum texto) e “deletistas” (participantes que querem deletar) dão-se, porém, pubicamente na própria wiki, havendo também sala para controvérsias sem solução. Muitas vezes o próprio Wales é vítima do debate e assume mudanças que não havia previsto, ainda, que, ao final, tenha a última palavra, como anota O’Neil (2009), num estudo vasto e contundente sobre “chefes cibernéticos – autonomia e autoridade em tribos online”. De um lado, promete-se ampla “democracia” (“todos podem editar” e os textos podem sempre, a qualquer hora, ser mudados), incentiva-se de maneira extraordinariamente apropriada a elaboração de textos com estrutura científica mínima (método), mas, de outro, não se escapa de um grupo gestor que comanda o processo em última instância e que estaria crescendo e se enrijecendo (Lih, 2009). Segundo Weinberger, Wales reluta em assumir o papel de decisor final e o faz da maneira mais infrequente possível. Certamente, é um feito sobreviver aos vandalismos constantes, sobretudo ter conseguido montar um sistema de vigilância dos próprios wikipedianos (Bryant et alii, 2005. Beschastnikh et alii, 2008. Besten et alii, 2008) que cuidam ardorosamente de sua obra coletiva, localizando de imediato cada ataque mal intencionado. A “ditadura” de Wales não desfaz o charme da Wikipédia como um caso notável de liderança coletiva.

Com o tempo, a Wikipédia desenvolveu um conjunto de políticas e processos que possibilitam a comunidade – ou a rede – tomar e mudar decisões. Quando não se viabiliza um acordo, outros processos são introduzidos, incluindo-se um comitê de arbitragem, podendo ocorrer, como última instância, a intervenção de Wales. Quando se necessita subir o escalão das decisões, analisa-se como falha do sistema que deveria funcionar sem isso. Algo similar aconteceu com Torvald em 1991, quando inventou o Linux e abriu o sistema operacional para participação de todos, procurando agregar a criatividade coletiva. Em 2006, Linux era o segundo maior sistema operacional (só atrás da Microsoft Windows), e Torvald estimou que havia cerca de 5 mil desenvolvedores trabalhando pelo mundo (Stout, 2006). Embora a comunidade Linux esteja longe de ser plana, sua hierarquia visa à maximização da autonomia individual por conta da expectativa de qualidade elevada dos produtos e processos. Segue-se aí a visão de Raymond (1998) de que a produção mais criativa provém, não de ambientes estritamente formalizados, mas daqueles com características de um bazar, mesmo que exista no Linux um centro final (Torvald). Na verdade, do ponto de vista sociológico, não se trata de eliminar a trama de poder, mas de a democratizar (Mouffe, 2005), já que em todo grupo humano aparecem clivagens de poder, mesmo no mais democrático. É mais realista olhar por esta perspectiva da democratização do poder, evitando idílios forçados, como se fosse viável um empreendimento coletivo sem direção, organização mínima, regras de convivência, exercício de poder.

Empreendimentos baseados em rede poderiam nos ensinar:

a) tomada de decisão em rede escala melhor do que situações hierárquicas, pelo menos em certas circunstâncias; por exemplo, Denning e Hayes-Roth (2006) tentaram mostrar que em eventos do porte do furacão Katrina são necessárias “hiper-redes”: organizações multicomponentes que sejam verdadeiramente enormes, espalhadas e diferenciadas; tais hiper-redes não possuem um topo hierárquico, repousando, ao invés, em decisões distribuídas;

b) tomada de decisão em rede ganha excelência quando requer grande número de conhecimento local, que é particularmente o caso quando situações são fluidas e diversas ou não se conhece ainda bem o caminho pela frente; não funciona bem quando o objetivo é imposto de fora, ou há excesso de dependências no fluxo do trabalho, ou os processos não são bem entendidos e os contribuintes se sentem compelidos a seguir diretivas;

c) tomada de decisão em rede pode motivar pessoas, enquanto decisão hierárquica, de cima para baixo, tem efeito oposto; muitas vezes hierarquias escalam suprimindo diferenças e desacordo, estragando a possibilidade de os participantes agirem descentralizadamente pelo bem comum e mantendo-se com o pé no chão das identidades locais;

d) quando decisões são distribuídas pela rede, pode-se aplicar mais conhecimento local; é indispensável algum equilíbrio, no sentido de evitar que decisões locais se tornem localistas, prejudicando o todo, mas a energia mais promissora é a que vem do chão, autonomamente;

e) quando decisões são tomadas localmente através da rede, tendem a expressar os interesses dos membros locais que, tipicamente, são voluntários; é um modo de tornar a “responsabilidade social corporativa” mais que mero projétil propagandista num PowerPoint (Weinberger, 2011:170);

f) organizações hierárquicas que deixam tudo nas mãos de um ente no topo não se mostram tão elásticas como organizações que distribuem a liderança através de uma rede conectada; por isso, o exército já pensa claramente em distribuir a liderança no grupo, mesmo não desfazendo a referência hierárquica;

g) tomada hierárquica de decisão é peça central das estratégias tradicionais redutivas para lidar com um mundo que é grande demais para conhecer; torna-se gritante que deixar tudo numa única mão decisória é uma proposta trágica, porque é inviável para uma cabeça só dar conta da complexidade do mundo; afinal, o mundo todo não é apto a ser decifrado, nem por mil cabeças, mas é possível acertar decisões mais aceitáveis.

II. NOVA INFRAESTRUTURA DO CONHECIMENTO

Entre possíveis discordâncias do que o livro analisou, Weinberger ressalta que uma coisa está clara: “Estamos numa crise de conhecimento” (2011:173). É sintomático que, nesta crise, não consigamos concordar sobre o que é conhecimento e, consequentemente, que solução poderíamos escolher. Por isso também é difícil resolver se a net nos torna mais estúpidos, ou não. “A questão é difícil, e não só porque a palavra ‘estúpido’ está sendo usada como instrumento cego. Ainda mais difícil é a alocução ‘está nos tornando’, pois implica um tecnodeterminismo, a crença de que a tecnologia impõe-nos usá-la e entendê-la em modos particulares. Em sua forma mais extrema, tecnodeterminismo diz que a net entra varrendo tudo e o tirano treme inevitavelmente, cartéis da mídia se desintegram e castelos colaborativos surgem no ar. Tecnodeterminismo não é diferente para os que pensam ser a internet inarredavelmente estupefaciente – reformatando nossos cérebros, como argui Carr (2010). Antitecnodeterministas, tais como o sociólogo Hargitai e o pesquisador da mídia social Boyd apontam para modos como nossa classe social, idade e subculturas afetam o uso da internet e o que significa para nós (Fuchs, 2008). Para alguns, a net pode ser uma eletrônica República das Letras, mas outros se sentem excluídos porque não possuem as habilidades técnicas, o tempo livre ou a personalidade agressiva que tantos fóruns da net favorecem. Por outro lado, há alguns elementos básicos da experiência da net compartilhados por quase todos que se encontram num browser da web. Estas experiências compartilhadas não são inevitáveis, nem todos reagem do mesmo modo. Ainda assim, parecem possuir alguns efeitos tendenciais que impactam diretamente como entendemos conhecimentos. Se formos ocidentais que usaram um browser para experienciar a net, provavelmente lhe surgirão pelo menos essas ideias: i) abundância – há mais coisas disponíveis para nós do que nunca imaginamos nos dias da TV e bibliotecas físicas; ii) links – ideias podem ser envoltas em hiperlinks, e pode-se ir de uma à outra com um mero clique; iii) livre de permissão – o default é que pessoas podem ler, postar e construir o que querem na net; iv) público – o que se vê, geralmente outros podem ver; a net é um vasto espaço púbico dentro do qual a exclusão de visitantes ou conteúdo é a exceção; v) não resolvido – quanto mais tempo se gasta na net, maior a evidência de que não iremos todos concordar sobre nada” (Weinberger, 2011:173-174). Weinberger analisa, então, tais itens:

a) abundância – abundante é o que existe mais do que se usa; então, conhecimento nos livros era abundante antes da net. Mesmo antes dos livros, os milhares de rolos de papel na Biblioteca de Alexandria eram mais do que se podia carregar para fora durante o incêndio, sem falar que ninguém podia ler todos. Só 2% do sistema da Biblioteca da Universidade de Harvard circulam todo ano e a maioria são os mesmos trabalhos que circularam no ano anterior. A nova abundância, por sua vez, torna a velha algo como escassez. O projeto do Google Books já escaneou mais de 15 milhões de livros e podem ser buscados na net (Crawford, 2010). Darnton (2010) está propondo uma Digital Public Library of America, chamando a atenção de muita gente interessada em algo alternativo ao Google Books. De qualquer forma, tudo gira em torno de infinda abundância. “Uma infraestrutura de conhecimento que nos dê acesso a mais dos trabalhos do mundo do que nunca antes – com o conjunto existente imperfeito, mas incrível, de ferramentas de busca – certamente parece melhor para os buscadores de conhecimento do que um que dê acesso a poucos. Isto não é o fim da estória, porque também temos acesso a mais inverdades, mas é um começo bem promissor da estória” (Weinberger, 2011:175). Nossa nova infraestrutura não só abre uma abundância, também torna esta abundância aparente para nós, mudando como entendemos conhecimento. Embora possamos ver apenas uma tela de cada vez dessa abundância, a tela está repleta de links para fora e que, por sua vez, encontram outros links sucessivamente. Muitas telas encobrem a plenitude por trás delas: a página de resultados para uma busca no Google sobre “abundância” leva a “cerca de 40,5 milhões em 0.27 segundos”. “Claro, a maioria do que a net nos disponibiliza não conta como conhecimento. Conhecimento em seu porte mais majestoso em nossa cultura – o conhecimento que nos faz avançar, que nos torna mais orgulhosos, que representa o melhor que podemos fazer como espécie, que gostamos de pronunciar com C grande – é o posto de abundante. Tem sido raro e duro de obter, tal qual Darwin com seus crustáceos ou Pauling com sua vacina. Esta visão de conhecimento como reino cuidadosamente cultivado é contraditada por todo hiperlink da rede selvagem que nos convida a entrar. Parece estarmos fazendo a escolha cultural – com o polegar da nossa nova infraestrutura pesadamente escalando – de preferir começar com abundância a começar com curadoria. Inclua-se tudo. Filtre-se depois. Mesmo então, os filtros não removem nada; filtram depois, não excluindo” (Weinberger, 2011:176);

b) links – conhecimento sempre aconteceu dentro de um contexto desenvolvido através de alguma forma de rede e mantido através de alguma forma de links; por exemplo, no On the Origin of Species, pode não haver notas de rodapé, mas o autor responde a possíveis objeções de leitores e foi escrito dentro de uma rede de colegas e opositores. Hoje, todo livro sério está cheio de referências bibliográficas, com o objetivo de autenticar as ideias, incluindo o exagero da apropriação obsessiva das ideais (copyright). Quando conhecimento era comunicado e preservado em papel, ideias conectadas eram expressas numa mídia desconectada; sabia-se que poucas pessoas iriam atrás de todo detalhe no livro, mas era preciso estar preparado para discordâncias; o autor se tornava porta-voz dos outros em sua rede de conhecimento, prendendo o leitor na trilha imposta; agora podemos colocar outros livros dentro do nosso, pelos links: “links erodem o controle autoral” (Weinberger, 2011:177). Muda também a topologia do conhecimento; as pessoas continuam escrevendo trabalhos longos pois o conhecimento complexo necessita de tempo para se desenvolver, tal qual toda narrativa o faz; mas os leitores são treinados pela net repleta de links a ver toda peça que desenvolve uma ideia vivendo numa trama conectada, atravessável. Sabemos que todo tópico se estica para além do que cobre, pois vemos links penetrando páginas milhares de vezes ao dia” (Ib.). Temos criado conhecimento como sistema de pontos de parada, porque era o que permitia a mídia do papel e porque é estratégia muito eficiente. Nossas fontes na ecologia do papel podem parecer menos confiáveis do que supúnhamos, mas, sem pontos de parada, não iríamos para lugar nenhum. A nova infraestrutura ainda tem pontos de parada, mas com a garantia implícita de que há outros lá. “A última palavra agora nunca é a última palavra. Assim, os links que todos encontramos em cada encontro com a web transformam por completo o molde do conhecimento, o papel das autoridades e credenciais e as razões e lugares a que permitimos que parem nossas investigações” (Weinberger, 2011:178);

c) livre de permissão - conhecimento “quer” ser abundante e envolto em links (Kelly, 2010), desafiando, ao postar-se livre de permissão, o conhecimento tradicional; conhecimento tem sido como um clube que aceita novos membros – um livro, um artigo, uma ideia – apenas depois de terem sido examinados por gente credenciada. A net não é completamente livre de permissão, mas nela o conhecimento perdeu sua exclusividade. “Dentro da ecologia livre de permissão da net, clubes de conhecimento – sites amparados que nos dão informação confiável – continuam existindo, pelo que deveríamos ser gratos. Quando menos, estamos vendo muito mais tais clubes na web. Mas esta proliferação de clubes com diferentes critérios de admissão está começando a devastar nossos modos institucionais de decidir o que é um experto. Numa ecologia em rede de conhecimento, como pode um comitê para professor titular decidir como sopesar quatro livros revisados por pares contra 12.045 tweets e 3.754 postagens de blogs? O que dizer dos comentários em blogs apresentados como credenciais acadêmicas?” (Weinberger, 2011:178-179). Quando havia poucos clubes, sabíamos o que cada um pretendia; por exemplo, conseguir publicar na Nature, alavancaria maximamente o currículo. Já numa ecologia da abundância livre de permissão, metadados – informação sobre informação – torna-se mais importante que nunca. “A diferença entre a sentença ‘Aves descendem de dinossauros’ quando provém de algum estranho anônimo na internet e quando vem da Nature é que os metadados dizem ser Nature confiável” (Weinberger, 2011:179). Em sua arquitetura própria, a net não abriga um sistema geral de permissão, o que torna conhecimento um conteúdo autossustentável, como se fossem nós que podem ser plenamente acreditados ou mesmo plenamente entendidos fora da rede que os conecta;

d) público – houve um tempo em que imaginávamos estar fazendo um favor para a gentalha mantê-la longe do conhecimento relevante; por isso, o Papa chamou Wycliffe de herege no século XIV por ter feito a primeira tradução em inglês da Bíblia Cristã (Wylie, 1899); por muito tempo, ensinávamos às crianças só o indispensável. Agora estamos oferecendo ao público uma educação alargada e cercada de bibliotecas por todos os lados e acessos infindos à net, colocando à disposição conhecimento e cultura ilimitados. Pensávamos que conhecimento é o que é verdadeiro independentemente de nós. Agora sabemos que conhecimento não é espelho da natureza, mas uma teia de conexões que se mostra a nós dependente de nosso ponto de vista e, em especial, daquilo que afeta nossos sentidos inescapavelmente. “Esperávamos que conhecimento fosse independente de nós; sabemos agora que não é com certeza” (Weinberger, 2011:180);

e) não resolvido – provas geométricas foram exemplares da forma de conhecimento dos inícios do conhecimento porque, dadas as premissas, podemos deduzir as conclusões certas. A filosofia ocidental envolveu-se com a pretensão de aumentar os padrões de certeza, exterminando toda incerteza pela via da formalização metodológica. Hoje sabemos que é um projeto falido – como pretender segurança máxima em aeroportos ou voos... Conhecimento final soa à religião barata. A ciência é uma estratégia de pesquisa sem fim, em torno de uma realidade que, a rigor, não conhecemos nem temos chance de devassar (Demo, 2002). A net escancara que o desacordo é parte do acordo e vice-versa. Tudo pode ser questionado, ainda que de maneira estúpida. Ademais, nossa nova mídia do conhecimento não consegue apartar informação, comunicação e socialidade. Basta postar qualquer coisa e se pode ver: colegas e amigos internautas que curtem concordar; conclusões ridículas sacadas; negação mesmo dos pontos tidos por mais óbvios. Como sabemos na vida real, não há nada que se possa dizer para convencer algumas pessoas. Isto pode dar saudade dos tempos do argumento de autoridade, porque este resolvia tudo. É preferível, porém – de longe preferível – a autoridade do argumento, apesar da bagunça toda na net. “O que temos em comum não é conhecimento acerca do que concordamos, mas um mundo compartilhado acerca do qual podemos sempre discordar” (Weinberger, 2011:182).

III. ESTRATÉGIA DO DEMAIS

Ninguém sabe aonde vamos parar! Não terminamos a tarefa de inovar, mas não sabemos também se a net vai continuar sendo um campo aberto para pesquisa, discurso e criatividade. O assalto à net é constante e talvez mais insidioso, seja por parte de governos centralizados que a usam para a repressão, seja por parte de empresas que querem assenhorear-se de espaços públicos (Vaidhyanathan, 2011. Jeanneney et alii, 2007), seja por legislações arcaicas como do copyright (Lessig, 2004). No cenário mais promissor, talvez venhamos a repor o padrão histórico várias vezes revelado: literacia, imprensa, livros e TV resultaram na vulgarização de formas anteriores, em geral sob queixas contundentes. Ainda assim, houve avanços. Havia também tesouros por trás do que tachávamos de vulgar. Ao mesmo tempo, avançamos porque conhecimento ajudou muito a descobrir oportunidades, movendo a cultura para frente, sob o risco de colonialismo. Sendo agora conhecimento tão acessível, talvez tais avanços possam ser até mesmo mais significativos e democratizados.

Weinberger, então, oferece cinco modos pelos quais podemos auxiliar o conhecimento em rede a tornar-se a bênção que deveria ser:

a) abrir acesso ainda mais – é fundamental cuidar que acesso não seja restringido, sob qualquer alegação, porque aprender é direito de todos; a net tem a vantagem de, ao filtrar conteúdos, não os descartar, pois filtra para frente; além de combater investidas de governos e empresários, é preciso também combater a busca de informação murada, resguardada, onde apenas se lê o que se determina; precisamos saber trabalhar com riscos da net, em especial com relação às crianças, mas não pode ser reduzida a espaços assépticos;

b) garantir trampolins para inteligência – a estratégia da abundância tem dois riscos principais: podemos não encontrar o que buscamos; encontramos muita coisa que excita nossos desejos mais baixos; sabemos já que para combater a sobrecarga de informação necessitamos de mais informação: metadados;

c) conectar tudo – é bom mostrar o trabalho que estamos fazendo, porque podemos receber feedback pertinente e ajudamos a compartilhar ideias;

d) não deixar para trás nenhum conhecimento institucional - a selva da net espraia conectividade que podemos aproveitar como oportunidade de acessos infindos;

e) ensinar a todos – para que todos possam ter chance similar (Weinberger, 2011:183-193).

Não podemos, porém, nos fazer da net uma imagem idílica, como se tudo fossem flores. “Como muitos já assinalaram, nossos motivos para colaboração são raramente puros. Nos dedicamos a tais problemas por todos os motivos que os humanos têm. Mas, sempre perseguimos conhecimento por uma mescla impura de razões, simplesmente porque somos humanos. Efetivamente, a variedade rica de nossos motivos é, em si mesma, razão de esperança: Temos agora mais razões do que antes para nos reunir na persecução coletiva do conhecimento. Há tão pouco empecilho no caminho da aprendizagem e contribuição que a mais fraca das razões pode ser suficiente para nos levar a contribuir. Então, não temos ainda nenhuma boa ideia do que não pode ser feito por humanos conectados, quando trabalham à escala da net” (Weinberger, 2011:194).

Retornando ao exemplo de Darwin, mesmo não sendo substituível, ele será diferente no futuro, porque a infraestrutura do conhecimento é incrivelmente diferente. Ele fica como protótipo do pesquisador emérito, também porque, não sendo de nenhuma universidade, pôs-se ao mar para pesquisar por conta própria. Hoje, sua pesquisa seria escudada em redes de informação e retroalimentada por infindos comentários e agregações, o que poderia tornar suas descobertas ainda mais retumbantes. “Pensávamos que conhecimento era escasso, quando, de fato, o problema era apenas que as estantes eram pequenas. Nosso novo conhecimento não é sequer um conjunto de trabalho. É uma infraestrutura de conexões” (Id.:196).

A meta é transforma o “demais” em oportunidades para todos. A net poderia contribuir muito, ainda que ela seja um lugar extremamente ambíguo e fortemente assaltado por interesses contraditórios.

PARA CONCLUIR

Foi uma longa viagem, quase como a de Darwin. Weinberger é um autor prolífero, inquieto, perspicaz e capaz de analisar fenômenos ainda tão próximos que analistas tradicionais não teriam coragem de fazer. A própria decisão minha de fazer um texto sobre cada capítulo (somente os dois finais coloquei num só) inspira-se no acato que devotei a esta obra. Um acato crítico, como mostrei muitas vezes, mas que reconhece o valor de uma análise incrivelmente futurista e bem urdida. Weinberger é protótipo do novo cientista: solto, conectado, bem humorado, inquisitivo, colaborativo, sem medo do novo. Por vezes, deixa a impressão de excesso de animação. Mas esta vem da convicção de que é essencial cuidar que a net seja oportunidade para todos. Faz parte da estrutura arquitetônica (da infraestrutura) da net ser espaço aberto, mesmo que tremendamente ambíguo.

Conhecimento inacabado não é algo novo, porque, em seus incunábulos, já era assim: todo argumento encontra um contra-argumento. O conhecimento se faz desta trama aberta e arriscada, não de scripts finalizados. A academia de hoje treme nas bases, porque percebe que se perdeu em certezas e burocracias que afogam a criatividade, retomada em alto estilo na net. No entanto, o que vem da net é mais que suspeito, em grande parte porque todos metem a mão. Na academia, só entram “mãos santas” – pretensa e ridiculamente, como diria Bourdieu (1990) – que decidem a sina das mãos sujas dos outros. A net quebra esta reclusão útil, porque conhecimento não se aparta de sua sociabilidade. Todo cientista tem pés de barro. Faria melhor em reconhecer isso e praticar conhecimento (Grinnell, 2009) compartilhado, para continuar aprendendo dos outros. Está se tornando mais fácil e ajuizado acreditar em conhecimento inacabado e aberto, do que no acabado e fechado, porque este é profundamente mentiroso. Quer evitar ser contestado, perdendo qualquer desconfiômetro autocrítico. Na net é impraticável postar conhecimento inatacável. Se alguém quisesse fazer isso, tornar-se-ia ainda mais atacável.

Talvez a sinalização mais brilhante seja que, finalmente, produzir conhecimento próprio pode ser feito por todos, também alunos da escola. Não vão para a escola para escutar aula, copiar e fazer prova, vão para produzir conhecimento próprio, e que é a alavanca maior hoje da criação de oportunidades. Está chegando, finalmente, a assim propalada sociedade do conhecimento.

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