Este documento faz parte da proposição Exercício de imaginação para outras possíveis vizinhanças, de Enrico Rocha, elaborada para a Exposição Performar, com curadoria de Waléria Américo e realização do Sobrado Dr. José Lourenço/ Instituto Mirante na Caixa Cultural em Fortaleza.
Na galeria estão presentes 2 pranchas com estudos arquitetônicos de um projeto de integração entre a Caixa Cultural e a rua Viaduto Moreira da Rocha. As imagens foram realizadas em colaboração com Cinira d'Alva e Hector Isaias, arquitetes e artistes, a partir da interlocução com Ana Nina, Cassia Vasconcelos, Gleice Correia, Ivoneide Gois, Izabel Lima e Sérgio Rocha, moradores do Poço da Draga.
Abril de 2024
_Este exercício de imaginação retoma a conversa sobre relações de vizinhança com o Poço da Draga apresentada na exposição “Uma mostra sem qualidades”, no MAC-CE, e no texto escrito para a publicação “Vocabulário político para processos estéticos”, ambos em 2014.
>>>>> PROCESSO >>>>>
Toda proposição artística convida a imaginar outras realidades. Um convite ao movimento, a sair do lugar, a desacomodar, a inquietar, a mexer na matéria do corpo e do mundo, a experimentar formas, a transformar. Também um gesto na direção do outro, um desejo de sentir com o outro, existir com o outro, produzir o comum sem constituir unidade, firmar junto a diferença.
A ideia de que seria possível outra relação de vizinhança entre a Caixa Cultural e o Poço da Draga sempre esteve presente na conversa que se realiza há bastante tempo com moradores da comunidade. O convite para participar de uma exposição na Caixa Cultural se apresentou como uma oportunidade para tornar a conversa pública e realizar esse exercício de imaginação com outras pessoas. Os 2 estudos arquitetônicos que participam da mostra coletiva na galeria materializam imagens de possíveis transformações no espaço de vizinhança, a partir da retirada do muro que separa a Caixa Cultural e a rua Viaduto Moreira da Rocha, e se apresentam como elementos motivadores dessa conversa aberta.
Foto apresentada por Serginho que apresenta a perspectiva da janela da antiga Alfândega na direção do mar. À direita a Avenida Almirante Tamandaré. Ao centro, uma ponte de madeira sobre o Corrente.
(Acervo Nirez)
>> Cinira d’Alva:
“A princípio fizemos um inventário da vizinhança da Caixa Cultural: a comunidade do Poço da Draga; a Av. Pessoa Anta e as três ruas que ladeiam o polígono do terreno. Percorremos algumas vezes o entorno e a comunidade, Hector e eu, no pequeno intervalo de tempo de que dispúnhamos. Pouco tempo pra pensar uma questão que é grande: a negação de um espaço público ao público. Um exercício poético e político. Com a melhor das boas vontades somos pretensiosos em achar que sabemos o que devemos incluir na discussão. Existe sempre algo que fica na sombra. No corpo a corpo com o problema o que está na sombra aparece. O “corrente” fez sua insistência, na fala dos moradores do Poço e nas fotografias. Abriu uma brecha na grade, levando a grade e o muro. Abriu uma brecha no tempo. Virou o chão do avesso e trouxe a restinga de volta. A coruja-buraqueira, o gavião-carijó, a maria-farinha e o sabiá. O resto vem voltando devagar. Esse é apenas o começo de uma longa conversa. Na verdade, estamos em guerra. O exercício é cosmopolítico”.
Estudo inicial
Gleice Correia sobre o Corrente:
“Quando eu era menina, tinha um senhor chamado Celeste que tomava conta daqui quando era Alfândega. Ele morava em uma casinha de madeira suspensa porque o “corrente” passava embaixo. Do lado da casa dele tinha uma cacimba. A gente brincava lá.
(...)
“Os homens da Cagece vieram há uns dois meses, porque o esgoto do meu vizinho estava voltando. Quando abriram a tampa ficaram maravilhados com a água limpa correndo. Depois fecharam a tampa e foram embora”.
Gleice apontando para o sistema de esgotamento sanitário onde o Corrente foi canalizado.
Foto: Cinira d'Alva
Serginho Rocha sobre o Corrente:
“O corrente vem lá do Alto da Prainha, tem um poço lá. Ele desce pela Rua Dragão do Mar e chega aqui. Ele corre paralelo ao Rio Pajeú, é outra coisa”.
Mapa do PIRF da ZEIS do Poço da Draga com intervenção de Cinira d’Alva indicando
a retomada do Corrente.
>> Hector Isaias:
“Respeitamos os que vieram antes, conversamos com o tempo e dentro dele surgiram olhos d´água, riachos, dunas móveis, vegetação rasteira; um areal protegido; murici de época, acerola madura, caju, cajá, pitomba.
Nas esquinas, tias, avós, bisavós e tataravós com olhares confidentes entoam um cântico para lembrar uma dívida histórica a ser sanada com ação e práticas urgentes. Comigo-ninguém-Pode!
Crianças jogam livres e brincam de imaginar nas ruas:
[E SE?]
Uma calçada de pedestres coberta cria um novo fluxo de passagem em frente ao antigo edifício da Alfândega, ligando a atual extremidade de acesso ao umbigo da comunidade, de um lado a outro.
Um jardim das delícias; o presente e passado agora se confundem com o futuro. Os acessos através da avenida em direção ao Dragão do Mar, sem a peleja frente aos carros, se abriram como um convite à passagem confortável do caminhante em direção à praia e ao retorno do trabalho. Pisamos descalços num campo de dunas completamente aberto e sem muros. Uma curva sinuosa se bifurca em encruzilhada com um chafariz, lugar de encontro vital, refúgio para merenda da tarde, para conversar com café e bolo mole, pro lazer com o jogo de dominó, pro carteado e pra feira livre.
[E SE?]
A cidade ganha um novo parque num local de memória primordial, vetor histórico de chegadas, saídas e resistências.
Não falamos do passado aqui, agora um riacho silencioso emerge entre bueiros com águas de nascentes ainda límpidas, resguardadas e filtradas pelas dunas soterradas. Viva o riacho corrente!
Para isso, os equipamentos anexos à Caixa Cultural, poluição sonora, maquinário e depósito, se amontoariam suspensos, formando volume esguio e respeitoso, cedendo espaço para um novo desenho do riacho nascente, um lugar para escoar águas do entorno nas boas épocas de chuva, um santuário com água doce no caminho da praia para apreciar a paisagem em horas de silêncio.
[E SE?]
A segurança do espaço é garantida por seu pertencimento por todes e pelos olhos abertos e atentos da comunidade. A guarita seria um espaço de atividades contínuas. O fuxico bordado enfeitaria os atuais portais de concreto, agora estendidos até a outra extremidade, unidos um a um, cada peça como um manto, criando um passeio agradável e sombreado. Risada, fofoca e renda circulando nas calçadas!
[E SE?]
Um matagal renasce em nossos sonhos, fertilizando com sombra e água fresca a possibilidade de viver e estar juntes”.
Vista aérea com intervenção de Hector indicando a retomada das águas.
>>>>> PREMISSAS >>>>>
Este exercício de imaginação se realiza a partir de algumas ideias e desejos:
_Ocupação do espaço de uma instituição pública, que promove a arte e estimula a inclusão e a cidadania;
_Disputa do imaginário coletivo e participação no debate público, em suas dimensões físicas e digitais;
_ARTiculação entre diversos sujeitos, pessoas e instituições, humanos e não-humanos, visíveis e invisíveis, encarnados e encantados;
_Adoção de práticas colaborativas e participativas com interesse na produção do comum;
_Entendimento de que toda ação cultural é ação política;
_Compreensão da instituição cultural como mediadora entre diversas perspectivas culturais que compõem um corpo social;
_Reconhecimento e valorização das experiências estéticas cotidianas;
_Defesa de boas relações de vizinhança: além da diplomacia colonizadora e da guerra;
_Realização de um gesto contra-espetacular, em rede e territorializado;
_Exercício poético: o mundo é a obra.